Tradução de Caio Rangel
2ª EDIÇÃO
EDIÇÕES MELHORAMENTOS
Título do original inglês: The Maracot Deep
Como me puseram em mãos estes papéis para que os publicasse, começarei relembrando ao público o lamentável desaparecimento do vapor «Stratford», que há um ano levantara ferros para uma viagem destinada a estudos oceanográficos e dos seres vivos das grandes profundidades marinhas. A expedição fora organizada pelo Dr. Maracot, o famoso autor das obras «Formações Pseudocoralíneas» e «Morfologia dos Lamelibrânquios». O Dr. Maracot levava consigo o sr. Cirus Headlei, ex-assistente do Instituto Zoológico de Cambridge, em Massachussetts, e aluno, na ocasião da viagem, da Escola Rhodia de Oxford. O Capitão Howie, experiente lobo-do-mar, era o encarregado da direção do navio e tinha às suas ordens uma tripulação de vinte e três homens, entre os quais se contava um mecânico americano, da Companhia Merribank, de Filadélfia.
Todas estas pessoas desapareceram e a única notícia que depois tivemos do malfadado vapor veio-nos de um veleiro norueguês que havia visto ir a pique um navio, cuja descrição correspondia exatamente aos característicos do navio em questão, durante a grande tempestade do outono de 1926. Um escaler, com o nome do «Stratford», foi encontrado posteriormente nas vizinhanças do local da tragédia, assim como fragmentos de tombadilho, um salva-vidas e um mastaréu. Tudo isto, aliado a um longo silêncio, nos fazia crer que nunca mais teríamos notícias do navio nem de sua equipagem. Sua triste sorte é tornada ainda mais patente pelo estranho radiograma captado naquela ocasião e que, embora incompreensível em alguns de seus detalhes, deixava poucas dúvidas quanto ao seu lamentável fim. Mais adiante voltarei a este ponto.
Havia algumas circunstâncias a respeito da viagem do «Stratford», que despertaram comentários naquela época. Uma delas era a singular reserva observada pelo Dr. Maracot. A aversão e desconfiança que sempre demonstrara para com a imprensa eram já bem notórias, mas nesta ocasião havia-se levado ao extremo de se recusar a dar qualquer informação aos repórteres e mesmo proibir que todo e qualquer representante de jornal pusesse pé no seu navio durante as semanas que este permaneceu nas Docas Alberto. Falava-se da existência no mesmo de algumas curiosas particularidades de construção que o tornavam próprio para os trabalhos em grandes profundidades a que era destinado, e estes boatos foram confirmados pelos estaleiros de Hunter & Companhia, de West Harthpool, aos quais essas alterações estruturais haviam sido confiadas. Havia mesmo corrido a notícia de que todo o fundo do navio era destacável, o que atraiu a atenção dos fiscais do Lloyd, aos quais custou darem-se por satisfeitos. Esta circunstância foi logo esquecida, mas reassume agora um novo interesse pelo fato de a sorte da expedição ter sido de tão extraordinária maneira trazida ao conhecimento do público.
Basta quanto ao início da viagem do «Stratford». Existem agora quatro documentos que dão conta até um certo ponto dos sucessos posteriores. O primeiro é a carta que o Sr. Cirus Headlei enviou da capital da Grande Canária, isto é, na única ocasião que se saiba ter o «Stratford» tocado em terra depois de levantar ferros do Tâmisa, ao seu amigo Sir James Talbot, do Colégio Trindade de Oxford. O segundo é o estranho radiograma a que aludi. O terceiro é aquele parágrafo do livro de bordo do «Arabella Knowles», que fala sobre a bola de vidro. O quarto e último é o estranho conteúdo da mesma, que ou representa a mais cruel e complexa das mistificações ou então virá abrir um novo capítulo na história da humanidade, cuja importância não pode ser exagerada. Feito este preâmbulo, apresentarei agora a carta do sr. Headlei, que devo à gentileza de Sir James Talbot e que é agora publicada pela primeira vez. Está datada de 1.° de outubro de 1926.
Envio-te esta, meu caro Talbot, de Porta de Ia Luz, onde aportamos para alguns dias de descanso. Meu principal companheiro nesta viagem tem sido Bill Scanlan, o mecânico-chefe, que, sendo meu compatriota e de espírito alegre e conversador, tornou-se muito naturalmente meu amigo inseparável. Estou contudo só esta manhã, pois ele arranjou por aí o que chama de «uma tâmara de saia». Como vês, ele se exprime do modo que os ingleses supõem ser de todo verdadeiro norte-americano. Estou certo de que este seria considerado realmente legítimo. Mesmo a mim, a força da sugestão me faz não raro descarrilar a linguagem quando estou com meus amigos ingleses. Sinto que eles nunca me considerariam como um verdadeiro ianque se tal não sucedesse. Contigo, porém, sei que isto é desnecessário, por isso desde já te asseguro que só encontrar ás puro inglês de Oxford nesta carta que ora te escrevo.
Já estiveste com Maracot no Mitre, por isso deves ter uma idéia do caráter do homem. Penso que já te contei como foi que ele veio a convidar-me para esta expedição. Ele se informou a meu respeito com o velho Somerville, do Instituto Zoológico, que lhe havia enviado meu estudo premiado sobre os caranguejos pelágicos e foi assim que começou esta história. É sem dúvida magnífico ter-se tal oportunidade de estudar um assunto que nos interessa, mas preferiria que não fosse em companhia de uma múmia animada como Maracot.
Não é humano o isolamento em que vive, inteiramente absorvido pelo seu trabalho. «É o maníaco mais maníaco do mundo», diz Bill Scanlan. Não se pode, contudo, deixar de admirar tal devotamento. Nada para ele existe além da sua própria ciência. Lembro-me de que te riste quando, tendo-lhe eu perguntado o que deveria ler para me preparar para a expedição, respondeu-me que para um estudo sério lesse a coleção de seus trabalhos, e como distração os «Plankton-Studien» de Haecket.
Não o conheço melhor agora do que o conhecia naquele pequeno salão que dava para Oxford High. Ele quase não fala e seu rosto magro e austero — o rosto de um Savonarola, ou, antes, talvez de um Torquemada — nunca se mostra expansivo. Seu nariz longo, fino e agressivo, seus dois olhos castanhos e brilhantes, muito aproximados sob espessas sobrancelhas, sua boca de lábios finos, suas faces que uma vida meditativa e ascética encovaram, tudo nele indica um caráter reservado e pouco comunicativo. Parece viver no cume de alguma montanha mental, fora do alcance do comum dos mortais. Às vezes penso até que é meio maluco. Por exemplo, esse extravagante aparelho que construiu… Mas, digamos cada coisa a seu tempo; poderás depois julgar por ti próprio.
Descrever-te-ei nossa viagem desde o começo. O «Stratford» é uma ótima embarcação, pequena e elegante, especialmente aparelhada para o seu trabalho. É um navio de mil e duzentas toneladas, de tombadilhos desatravancados e um bom leme largo, estando provido com todos os instrumentos necessários para sondagens e pescas com toda a espécie de redes, sendo que alguns são de uso corrente e outros de formas extravagantes. Além disso, possui confortáveis acomodações, com um bem aparelhado laboratório para nossos estudos.
Antes de partirmos, nosso navio era considerado um navio misterioso e vi logo que não era sem razão. O começo de nossa viagem nada teve de notável. Demos um giro pelo Mar do Norte e deitamos nossas redes uma vez ou duas. Mas ali a profundidade média não vai muito além de sessenta pés, e como estávamos especialmente aparelhados para pescas em grandes profundidades, isto parecia antes uma perda de tempo. Além de peixes de mesa vulgares, tubarões, lulas e certa quantidade de argila de aluvião comum dos depósitos do fundo, nada obtivemos que mereça menção especial. Contornamos em seguida a Escócia, passamos à vista das Ilhas Faroes e descemos o Wyville-Thomson Ridge, onde tivemos melhor sorte. Daí dirigimo-nos para o sul, para o nosso verdadeiro campo de operações, que ficava entre as costas da África e estas ilhas. Quase encalhamos em Fuerte-Ventura numa noite sem lua, mas, além deste pequeno incidente, não houve em nossa viagem nenhum outro sucesso digno de nota.
Durante estas primeiras semanas, procurei captar as simpatias de Maracot, o que não era fácil tarefa. Em primeiro lugar ele é o homem mais distraído do mundo. Com certeza ainda te lembrarás de como sorriste quando ele deu ao moço do elevador um níquel de um pêni supondo que se achava num bonde. A maior parte do tempo está perdido em seus pensamentos e mal parece consciente do lugar em que está e daquilo que está fazendo. Além disso ele é reservado ao último ponto. Está continuamente às voltas com seus papéis e mapas, que ele rapidamente guarda quando sucede eu entrar na cabina. Creio firmemente que o homem tem algum plano secreto em mira, mas que enquanto tivermos de tocar em algum porto não o revelará a ninguém. É esta a impressão que tenho e penso que Bill Scanlan é da mesma opinião.
— Diga-me, Sr. Headlei — disse-me ele uma tarde em que me achava no laboratório dosando a salinidade de algumas amostras de água marinha obtidas em nossas sondagens hidrográficas — qual lhe parece que seja a tenção desse homem? Que supõe que ele pretenda fazer?
— Suponho, respondi, que faremos o mesmo que o «Challenger» e uma dezena de outros navios fizeram antes de nós: acrescentaremos algumas espécies mais à lista de peixes conhecidos e adicionaremos novas indicações aos mapas batimétricos.
— Qual, não acredito, disse ele. Se é essa a sua opinião, receio que tenha logo de mudá-la. Antes de mais nada, para que estou eu aqui?
— Para a eventualidade de haver algum desarranjo nas máquinas, arrisquei.
— Que máquinas nada! As máquinas estão a cargo de MacLaren, o engenheiro escocês. Não, Sr. Headlei, não seria para um serviço desses que o pessoal de Merribank iria emprestar seu melhor mecânico. Não será para nada que estou ganhando cinqüenta libras por semana. Venha comigo que lhe mostrarei para que é.
Tirou uma chave do bolso, abriu uma porta dos fundos do laboratório e descemos uma escada que ia ter a um repartimento do porão quase vazio, onde só se entrevia parte de quatro grandes objetos polidos por entre a embalagem de suas grandes caixas. Eram quatro lâminas de aço, de margens providas de fechos e charneiras de primoroso acabamento. Cada folha tinha cerca de dez pés quadrados e uma polegada e meia de espessura, com uma abertura circular de dezoito polegadas no centro.
— Que diabo será isso? perguntei.
A fisionomia expressiva de Bill Scanlan — sua aparência é intermediária entre a de um cômico de «vaudeville» e a de um pugilista profissional — abriu-se num sorriso ao ver meu espanto.
— É para isto que estou aqui, meu bebê — Sr. Headlei, quero dizer. Há lá naquela caixa um fundo de aço para a coisa. Além disso há uma coberta — uma espécie de abóbada — e uma grande roldana para uma corrente ou cabo. Olhe agora aqui o fundo do navio.
Havia aí um espaço coberto por um quadrado de madeira provido de parafusos salientes nos ângulos, o que mostrava ser o mesmo destacável.
— Há um duplo fundo no navio, disse Scanlan. É bem possível que este sujeito esteja louco varrido; seja como for, acho que não nos revelou todos os seus planos. Se bem compreendo o homem, creio que ele pretende construir uma espécie de quarto — já vi as janelas noutro lugar do porão — e baixá-lo pelo fundo do navio. Além disso ele trouxe também projetores elétricos e creio que o seu plano é projetar sua luz pelos postigos para observar o que se passa em torno.
— Se fosse esse o seu desejo, ele poderia ter posto uma lâmina de cristal no fundo do navio, à moda dos botes da Ilha Catalina, observei.
— É mesmo, disse Bill Scanlan cocando a cabeça. Não compreendo ainda direito o que é que esse homem quer. O que é certo é que me mandaram trabalhar sob suas ordens e ajudá-lo no que puder. Ele até agora não disse nada, por isso eu também fiz o mesmo, mas estou à espreita e creio que se isto ainda se demorar um pouco ficarei sabendo tudo por minha própria conta.
Foi assim que cheguei pela primeira vez à borda de nosso mistério. Depois disto tivemos alguns dias de mau tempo e em seguida fizemos algumas pescas de arrasto em grandes profundidades a noroeste do Cabo Juba, logo para fora do Declive Continental, fazendo ao mesmo tempo, leituras de temperatura e dosagens dos sais da água. É uma ocupação divertida lançar-se uma rede de arrasto Peterson, com seus vinte pés de extensão a barrar o caminho de tudo o que vem em sua direção — algumas vezes à profundidade de um quarto de milha — apanhando de cada vez um lote diferente de peixes desse oceano em que cada profundidade tem seus habitantes próprios, como se fosse uma estratificação de continentes distintos. Algumas vezes trazíamos do fundo meia tonelada de uma geléia viva, clara e cor-de-rosa, ou então um punhado de limo de pterópodos que sob o microscópio revelava milhões de pequeninas esférulas reticuladas cercadas de matéria amorfa. Não te quero maçar com a enumeração dos brotulídeos e macrurídeos, ascídias, holotúrias, polizoários e equinodermas que encontramos — mas fica em todo o caso sabendo que a seara do mar é grande e que fomos diligentes ceifadores. Mas continuava a ter sempre a impressão de que Maracot não fazia aquilo com entusiasmo e que outros planos dormitavam naquela sua esquisita cabeça alta e estreita de múmia egípcia. Tudo aquilo me parecia ser apenas uma simples experimentação de homens e aparelhos para verificar se estavam em condições de executar o verdadeiro objetivo da expedição.
Tinha chegado a este ponto de minha carta quando resolvi descer em terra para um último giro, pois partiremos amanhã bem cedo. Foi bom talvez ter feito isto, pois travara-se no cais uma tumultuosa disputa em que se achavam envolvidos o Dr. Maracot e Bill Scanlan. Bill é rapaz resoluto e não tem medo de nada, mas com meia dúzia de mandriões armados de faca ao seu redor as coisas não pareciam muito promissoras para eles e já era tempo que eu interviesse. A razão de tudo fora o Dr. Maracot haver alugado uma dessas coisas que eles chamavam de carruagem e percorrido mais de metade da ilha observando suas formações geológicas, tendo-se esquecido completamente de que não trazia dinheiro consigo. Quando chegou o momento de pagar ele não conseguira fazer-lhes compreender o caso e o cocheiro se apoderara de seu relógio como garantia. Isto fez Bill Scanlan entrar em ação e pelo pé em que estavam as coisas é bem possível que fossem ambos parar no chão com as costas como pregadeiras de alfinetes se eu não tivesse resolvido o assunto com um ou dois dólares para o condutor do veículo e uma nota de cinco dólares para o homem que Bill Scanlan pusera de olho inchado. Tudo assim terminou bem e foi esta a ocasião em que Maracot me pareceu mais humano.
Quando chegamos ao navio ele levou-me para a pequena cabina que reservara para si próprio e agradeceu minha intervenção.
— A propósito, Sr. Headlei, disse-me ele; creio que o senhor não é casado, não é verdade?
— Não, respondi. Sou solteiro.
— Ninguém depende de sua pessoa?
— Ninguém.
— Muito bem! disse ele. Não lhe contei o verdadeiro objetivo desta viagem, meu amigo, porque desejava por certas razões conservá-lo em segredo. Uma dessas razões é que receava que outros me precedessem. Quando se têm planos científicos em mira, deve-se recear que suceda o mesmo que se passou entre Scott e Amundsen. Se Scott tivesse guardado o seu segredo, como fiz, seria ele, e não Amundsen que chegaria primeiro ao Pólo Sul. Quanto a mim, minha meta é tão importante como o Pólo Sul e por isso resolvi guardar a máxima reserva. Mas agora, que estamos nas vésperas de nossa grande aventura, nenhum rival terá tempo para apropriar-se de meus planos. Amanhã partiremos para o nosso verdadeiro objetivo.
— E qual é ele? perguntei.
O Dr. Maracot curvou-se para a frente com o rosto austero inflamado pelo entusiasmo de um fanático.
— Nossa meta, disse ele, é o fundo do Oceano Atlântico. Faço aqui uma pausa, pois espero que a notícia te tenha paralisado a respiração do mesmo modo que o fez com a minha. Se eu fosse um romancista, creio que encerraria aqui um capítulo, mas, como não passo de um simples cronista dos fatos, dir-te-ei que permaneci outra hora na cabina do velho Maracot, o qual me disse muitas coisas extraordinárias que tenho o tempo estritamente necessário para te contar antes que parta o último bote para a praia.
— Sim, disse ele, pode escrever agora, o que quiser, pois quando sua carta chegar à Inglaterra já teremos dado nosso mergulho.
Ao dizer isto riu-se, pois ele tem um senso de humor estranhamente apurado.
— Sim, meu caro senhor, mergulho é a palavra adequada nesta ocasião, um mergulho que se tornará histórico nos anais da Ciência. Permita-me que lhe diga em primeiro lugar que estou perfeitamente convicto de que a doutrina corrente da extrema pressão que existiria nas grandes profundidades oceânicas é inteiramente errônea. É perfeitamente claro que outros fatores devem existir que neutralizem esse efeito, se bem que eu ainda não esteja aparelhado para dizer quais sejam. É um problema a resolver. Diga-me agora uma coisa: qual seria a pressão que se poderia esperar sob uma milha de água?
Seus olhos luziam ao fitar-me, detrás de seus grandes óculos de tartaruga.
— Suponho que para mais de uma tonelada por polegada quadrada, respondi. Parece-me que isto já foi claramente demonstrado.
— O papel do pioneiro sempre foi desmentir coisas claramente demonstradas. Utilize seu cérebro, meu rapaz. O senhor passou o último mês a pescar algumas delicadas encarnações da vida das grandes profundidades, animais tão frágeis que dificilmente conseguia transportá-los da rede para o tanque sem os deformar com as mãos. Achou acaso que houvesse neles algum sinal da imensa pressão que deveriam suportar?
— A pressão estava neutralizada, respondi. Era a mesma tanto dentro como fora.
— Palavras — simples palavras! exclamou ele abanando impaciente a cabeça magra. O senhor pescou peixes esféricos como o «Gastrostomus globulus». Pois não seriam eles comprimidos e achatados se a pressão fosse como imagina?
— E a impressão pessoal relatada por numerosas pessoas?
— Certamente será verdadeira até certo ponto. Encontraram um aumento de pressão suficiente para impressionar o órgão mais sensível do corpo, que é o interior do ouvido. Mas na execução de meu plano não estaremos expostos a pressão alguma. Descer-nos-ão do navio dentro de um compartimento de aço, com janelas de cristal de cada lado para observação. Se a pressão não tiver força para arrebentar uma polegada e meia de aço não nos poderá fazer mal. Será uma reprodução em ponto maior da experiência dos irmãos Williamson em Nassau, que certamente já conhecerá. Se meus cálculos estiverem errados… ainda bem que ninguém depende de sua pessoa. Morreremos numa grande aventura. Se preferir, porém, não tomar parte neste empreendimento, poderei ir só.
Parecia-me a mais rematada das loucuras, mas bem sabes como é difícil recusar-se um convite para uma empresa arriscada. Fiz algumas perguntas para ganhar tempo.
— Até que profundidade pretende descer, Dr. Maracot?
Havia um mapa estendido na mesa e ele tocou com a extremidade de um compasso um ponto a sudoeste das Canárias.
— No ano passado fiz algumas sondagens nesta região, disse ele. Há aqui uma depressão de grande profundidade. Medimos vinte e cinco mil pés em alguns pontos. Fui eu o primeiro a assinalar este fato. Creio mesmo que a verá registrada nos mapas futuros com o nome de «Pélago de Maracot».
— Mas por Deus, doutor! exclamei, creio que não pretenderá descer num abismo como esse?
— Não, respondeu ele sorrindo. Nem nossa corrente nem os tubos de ar vão além de meia milha. Mas estava para lhe dizer que ao redor desta profunda depressão, que sem dúvida foi produzida por forças vulcânicas numa época remota, há uma espécie de planalto estreito que não está a mais de trezentas toesas abaixo da superfície.
— Trezentas toesas! Um terço de milha!
— Exatamente; apenas um terço de milha. Minha presente intenção é fazer com que nos desçam em nosso pequeno compartimento até esse ponto. Aí faremos as observações que pudermos. Estaremos em comunicação com o navio por meio de um telefone, de modo a podermos transmitir nossas ordens. Não haverá dificuldades nisso. Quando quisermos ser novamente içados, bastará dizê-lo.
— E o ar?
— Será renovado do interior do navio por meio de bombas.
— Mas deverá haver lá uma escuridão de breu.
— Isto, infelizmente, deve ser verdade. As experiências de Foi e Sarasin no Lago Genebra mostraram que mesmo os raios ultravioleta não chegam a tal profundidade. Mas que importa? Estaremos providos com a poderosa iluminação elétrica dos motores do navio, além de seis pilhas secas de Hellesens associadas de modo a dar uma tensão de doze volts. Isto e um refletor Lucas para sinais dos usados no exército bastará aos nossos fins. Vê alguma outra dificuldade?
— E se nossos condutos de ar se embaraçarem um no outro?
— Eles não se embaraçarão. Como reserva, além disso, temos ar comprimido em tubos que darão para vinte e quatro horas. Dá-se por satisfeito? Aceita o meu convite?
Não era uma resolução fácil de tomar. O cérebro trabalha rapidamente e a imaginação nos leva longe. Parecia-me ver já aquela caixa negra a descer através de profundezas primevas, sentir o ar denso e viciado e ver repentinamente as paredes deslocarem-se, encurvarem-se para dentro rompendo-se nos ângulos e a água jorrando de todas as junturas, de todos os lados. Seria uma morte lenta e horrível. Mas levantei o olhar e deparei com os olhos ansiosos daquele velho, cravados em mim com a exaltação de um mártir da ciência. Era um entusiasmo contagioso aquele, e, apesar de insano, era contudo nobre e abnegado. Seu ardor inflamou-me também quase a contragosto e pus-me de pé num salto com a mão estendida.
— Doutor, pode contar comigo até o fim.
— Já o sabia, disse ele. Não foi por causa de suas tinturas de ciência que o escolhi, meu jovem amigo, nem — acrescentou sorrindo — devido aos seus conhecimentos profundos dos caranguejos marinhos. Há outras qualidades que aqui podem ser mais imediatamente úteis, que são a lealdade e a coragem.
Assim, com este pequeno pedaço de açúcar, fui despedido com meu futuro empenhado e desmantelados todos os meus planos de vida. Mas fiquemos por aqui; o último bote já está de partida para a praia e estão pedindo a correspondência. Pode suceder que não ouças mais falar de mim, ou que recebas uma carta digna de ser lida. Se se der a primeira hipótese poderás tomar uma lousa flutuante e deixá-la cair no oceano, num lugar qualquer ao sul das Canárias, com a inscrição:
«Aqui ou alhures jaz tudo o que os peixes deixaram de meu amigo — Cirus J. Headlei».
O segundo documento em questão é o ininteligível radiograma que foi captado por vários navios, inclusive o paquete «Arroya» da Royal Mail. Foi recebido às três da madrugada do dia três de outubro de 1926, o que mostra ter sido expedido dois dias depois de haver o «Stratford» deixado a Grande Canária, como se vê pela carta anterior, e está em completo acordo com a indicação do veleiro norueguês que viu um vapor ir a pique durante um ciclone, duzentas milhas a sudoeste de Porta de Ia Luz. Dizia o seguinte:
«Graves avarias no navio. Receio nossa situação desesperadora. Já perdemos Maracot, Headlei, Scanlan. Situação incompreensível. Lenço de Headlei aparecido na extremidade da sonda de grandes profundidades. Deus nos ajude! — S.S. Stratford».
Foi esta mensagem incoerente a última que se recebeu do malfadado vapor, e parte dela era tão extravagante que foi posta à conta de delírio por parte do radiotelegrafista. Parecia contudo não deixar dúvidas quanto à sorte do navio.
A explicação de tudo — se puder ser aceita como uma explicação — encontrou-se na narrativa oculta dentro da bola de cristal, sendo que achamos preferível dar antes notícias menos sucintas sobre a sua descoberta. Reproduzirei literalmente o relatório de Amos Green, o comandante do «Arabella Knowles», que foi quem a recolheu quando transportava carvão de Cardiff para Buenos Aires.
«Quarta-feira, 5 de janeiro de 1927. Latitude, 27°14′; longitude, 28° ocidental. Tempo calmo. Céu azul com cirros baixos. Mar bonançoso. Às duas horas o primeiro oficial participou que vira um objeto brilhante saltar a uma grande altura para fora do mar e cair de novo nas águas. À primeira vista supôs tratar-se de algum estranho peixe, mas examinando melhor com uma luneta viu que se tratava de um globo ou bola de aspecto metálico, e tão leve que parecia antes repousar do que flutuar propriamente na superfície das águas. Fui então chamado e vi o objeto em questão, do tamanho de uma bola de futebol, a brilhar a estibordo, cerca de uma milha distante do navio. Parei as máquinas e enviei um escaler sob as ordens do segundo piloto, que o recolheu e trouxe para bordo.
Examinando-o vimos tratar-se de uma bola feita de uma espécie de vidro muito resistente e cheia de um gás tão leve que, quando era atirada no ar, custava a cair, como essas bolas com que as crianças brincam. Era mais ou menos transparente e podíamos ver no interior qualquer coisa parecida com um rolo de papel. O vidro era porém tão resistente que tivemos enorme dificuldade em quebrar a bola para examinarmos o seu conteúdo. Um martelo não pôde quebrá-lo e só quando o engenheiro-chefe se lembrou de utilizar para isso as máquinas do navio é que conseguimos esmigalhá-la. Lamento ter de dizer que a mesma se dissolveu numa nuvem de partículas brilhantes, tendo sido impossível conseguir-se uma amostra de bom tamanho para ser examinada. O papel, contudo, ficou intato, e, tendo examinado o mesmo e visto que era de grande importância, guardamo-lo cuidadosamente com a.intenção de entregá-lo ao cônsul britânico, quando chegássemos ao Rio da Prata. Vivo no mar desde rapaz, há trinta e cinco anos, mas este é o fato mais extraordinário com que até hoje deparei e o mesmo dizem todos os homens de bordo. Deixo a interpretação disso tudo a pessoas mais capazes do que eu.»
Após este breve intróito daremos a narração de Cirus J. Headlei exatamente como foi escrita:
Para quem estou escrevendo? Creio poder dizer que para o mundo inteiro, mas como este endereço seria vago demais, dirigirei esta ao meu amigo Sir James Talbot, da Universidade de Oxford, em virtude de ter sido a ele que escrevi minha última carta, de que esta deverá ser considerada como continuação. Sei que há cem probabilidades contra uma de que mesmo que esta bola veja a luz do dia e não seja engolida de passagem por algum tubarão, permaneça indefinidamente sobre as águas sem nunca chamar a atenção dos marinheiros que passarem. Contudo, vale a pena tentar, e como Maracot também pretende enviar uma outra, é bem possível que consigamos levar nossa espantosa história ao conhecimento do mundo. Bem sei que poderá haver certa incredulidade por parte dos que lerem esta, mas, quando se tiver examinado a casca de vidrina da bola e seu conteúdo de gás levigênio, ver-se-á certamente que existe aqui algo que sai do ordinário. Tu pelo menos, Talbot, não a jogarás de lado sem a ler.
Se alguém quiser saber como começou tudo isto e o que queríamos fazer, encontrará tudo na carta que te escrevi a 1.° de outubro do ano passado, na véspera de deixarmos Porta de Ia Luz. Por São Jorge! se eu soubesse o que nos esperava, creio que me teria metido num bote e partido para terra naquela mesma noite… Todavia… é bem possível que mesmo com os olhos abertos eu permanecesse ao lado do Dr. Maracot e enfrentasse com ele a grande aventura. Pensando bem, não tenho dúvidas de que o faria.
Vou porém continuar minha história do dia em que deixamos a Grande Canária em diante.
Logo que saímos do porto, o velho Maracot pareceu positivamente pegar fogo. Chegara finalmente o momento de agir e toda a energia represada daquele homem admirável explodiu subitamente. Assumiu em pessoa a direção do navio e de todos e tudo o que nele se achava, sujeitando-os à sua vontade. O sábio distraído e secarrão desaparecera por completo, surgindo em seu lugar uma máquina elétrica humana, rumorosa de vitalidade e vibrante da grande força que a animava. Seus olhos brilhavam detrás de seus óculos como as chamas de uma lanterna. Parecia estar em toda parte ao mesmo tempo, anotando distâncias em seu mapa, comparando cálculos com o comandante, arrastando consigo Bill Scanlan, encarregando-me de cem pequenas coisas, mas tudo cheio de método e com um fim definido. Demonstrou insuspeitados conhecimentos de eletricidade e mecânica, e passava a maior parte do tempo a trabalhar em maquinismos, que Scanlan, sob suas ordens, estava agora cuidadosamente montando.
— Venha cá dar uma olhadela, Sr. Headlei — disse-me Bill na manhã do segundo dia. — O doutor é uma boa pessoa e um mecânico às direitas.
Apesar da desagradável impressão que tive de estar a olhar para o meu próprio ataúde, fui obrigado a reconhecer que não deixava de ser um mausoléu bem apresentável. O assoalho fora preso às quatro paredes de aço e vidraças redondas atarraxadas no centro de cada uma delas. Um pequeno alçapão dava ingresso pela parte superior e havia um outro ainda embaixo. Essa caixa de aço estava suspensa por um cabo pouco grosso, mas muito resistente, que passava sobre uma roldana e era manobrada pelo poderoso maquinismo que usáramos para nossas pescas em grandes profundidades. O cabo, ao que parecia, devia ter cerca de meia milha de comprimento e grande parte do mesmo se achava enrolada em sarilhos no tombadilho. Os tubos de borracha para renovar o ar eram do mesmo comprimento, e o fio do telefone estava preso aos mesmos, assim como os fios pelos quais se poderiam utilizar na iluminação da nossa caixa as baterias do próprio navio, embora tivéssemos também uma instalação elétrica independente.
Foi na tarde daquele dia que se fez parar as máquinas. O mar estava calmo, mas uma nuvem escura no horizonte anunciava uma provável tempestade. O único navio à vista era uma embarcação de três mastros que ostentava as cores norueguesas, e observamos que tinha as velas colhidas, como se esperasse mau tempo. Naquele momento, porém, tudo era propício e o «Stratford» vogava calmamente sobre um profundo oceano azul, apenas pincelado de branco aqui e além pelo sopro dos alísios. Bill Scanlan veio procurar-me em meu laboratório, dando, contrariamente a seu temperamento, mostras de viva agitação.
— Veja só, Sr. Headlei! exclamou; eles baixaram aquela caixa para um buraco no fundo do navio. Acha que o patrão descerá mesmo naquilo?
— Sem a menor dúvida, Bill. E eu também vou com ele.
— Pois estão os dois loucos varridos em pensar em tal coisa. Mas eu é que não os deixarei ir sós.
— Você não tem nada com este negócio, Bill.
— Pois eu já não penso assim. Que eu fique amarelo, como um chinês com icterícia se os deixar ir sozinhos. O pessoal de Merribank mandou-me aqui para cuidar do aparelho e se ele for para o fundo do mar é lógico que eu também devo ir para lá. Onde estiverem aqueles aparelhos de aço, esse será o endereço de Bill Scanlan — estejam os que o rodeiam loucos varridos ou não.
Foi inútil discutir com ele; assim, um membro mais foi acrescentado à nossa pequena associação de suicidas e ficamos à espera de ordens.
Toda a noite trabalharam incessantemente em preparativos, e após um rápido almoço na manhã seguinte, descemos para o porão, prontos para a aventura. A caixa de aço fora baixada a meio pelo falso fundo e um por um descemos pelo alçapão superior que foi fechado e parafusado depois de entrarmos, tendo o Capitão Howie apertado lügubremente a mão de cada um de nós ao passarmos por ele. Desceram-nos então mais alguns pés, fecharam o primeiro fundo sobre as nossas cabeças e fizeram com que a água envolvesse nossa caixa, para verificarmos se não penetrava no interior. A prova foi satisfatória: todas as junturas estavam bem adaptadas e não havia sinal da mais leve fenda. O segundo fundo do navio foi então aberto e fomos baixados no oceano, abaixo do nível do casco do navio.
Era realmente um compartimento pequeno, mas bem aparelhado e maravilhei-me do cuidado e previsão com que tudo fora organizado. Ainda não havíamos acendido as lâmpadas elétricas, mas a luz do sol semitropical jorrava pelas vidraças através da água verde-garrafa. Viam-se passar aqui e além peixes de pequeno porte, como traços brilhantes de prata contra o fundo verde. No interior havia uma espécie de banco que rodeava o pequeno compartimento, acima do qual se viam enfileirados um batímetro de quadrante para se lerem profundidades, um termômetro e outros instrumentos. Abaixo dos bancos via-se uma fileira de recipientes cilíndricos fechados, que continham nossa reserva de ar comprimido para o caso de os tubos condutores de ar pararem de funcionar. Estes tubos abriam-se acima de nossas cabeças e o aparelho telefônico pendia ao lado deles. Pudemos todos ouvir a voz do capitão, perguntando-nos do navio:
— Estão realmente resolvidos a ir?
— Estamos todos completamente à vontade, respondeu o Dr. Maracot impaciente. Desça lentamente nossa caixa e tenha sempre alguma pessoa no receptor. Dir-lhes-ei o que têm a fazer. Quando atingirmos o fundo, deixe tudo como estiver até que eu dê novas instruções. Não convém forçar muito o cabo de aço; um movimento lento de um par de nós por hora não será excessivo. E agora, — «Larguem!»
Ele soltara este brado numa voz de insano. Era o momento supremo de sua vida, o momento da execução de seu sonho mais caro. Durante um instante passou-me pelo espírito a idéia de que estávamos realmente em poder de um perigoso monomaníaco. Bill Scanlan teve a mesma idéia que eu, pois olhou-me com uma careta fúnebre e apontou para a testa. Mas, logo depois deste impulso de entusiasmo, Maracot tornou-se novamente o mesmo homem reservado e tranqüilo de sempre. Bastava aliás olharmos para a ordem e espírito de previsão que se mostrava em cada detalhe ao nosso redor para nos reassegurarmos da sanidade de seu espírito.
Mas agora toda a nossa atenção se voltara — para a espantosa viagem que se iniciara. Lentamente nossa caixa mergulhava nas profundezas do oceano. A água, de um verde claro, passou pouco a pouco a um escuro verde oliva. Este por sua vez transmudou-se aos poucos num belo azul, que gradualmente passou a um púrpura fusco. Cada vez descíamos mais baixo — cem pés, duzentos, trezentos pés. As válvulas funcionavam perfeitamente. Nossa respiração era tão fácil e natural como se estivéssemos no tombadilho do navio. Lentamente a agulha batimétrica se movia no quadrante luminoso. Quatrocentos, quinhentos, seiscentos. «Vai tudo bem?» perguntou uma voz ansiosa vinda de cima.
— O melhor possível — gritou Maracot em resposta. Mas a luz já nos ia faltando. Havia agora apenas uma leve claridade acinzentada que escurecia cada vez mais. — Pare! — gritou nosso chefe. Cessou nosso movimento e ficamos suspensos a uma altura de setecentos pés abaixo da superfície do oceano. Ouvi o Dr. Maracot apertar um botão e no mesmo instante éramos inundados pela viva luz de nossas lâmpadas, que, atravessando as janelas, revelavam aos nossos olhos longos trechos do mundo de água que nos cercava. Com os rostos colados às vidraças redondas, cada um em seu postigo, observávamos extasiados aquelas perspectivas que olhos humanos jamais haviam contemplado.
Até então, so conhecíamos essas camadas profundas pelos peixes, que, ou eram tardos demais para fugir à nossa grosseira rede envolvente, ou muito estúpidos para escapar a uma rede de arrasto. Agora, porém, víamos o admirável mundo das águas sob seu verdadeiro aspecto. Se o objeto da criação foi a produção do homem, é estranho que os oceanos sejam tão mais populosos que a terra. Nem Broadway numa noite de sábado, nem Lombard Street numa tarde de comércio eram mais movimentadas que os grandes espaços marinhos que se estendiam à nossa frente. Havíamos já ultrapassado as camadas superficiais em que os peixes ou são incolores ou das verdadeiras cores marinhas; azul ultramarino em cima e prata embaixo. Aqui, pelo contrário, víamos seres de todas as cores e formas imagináveis que a vida pelágica poderia criar. Delicados leptocéfalos ou enguias larvárias desfechavam através do túnel de iluminação como riscas de prata polida. As formas tardas e coleantes da murena, a lampreia das águas profundas ou a coratia preta, toda espinhos e boca, fugiam loucamente à vista de nossos rostos curiosos. Algumas vezes era um grande polvo que passava à nossa frente e nos olhava com sinistros olhos humanos, outras era alguma forma transparente da vida pelágica, cistoma ou glaucus, que emprestava à cena como que o encanto de uma flor. Uma enorme caranx ou cavala arremeteu furiosamente repetidas vezes contra nossa janela, até que o vulto escuro de um tubarão de sete pés se abateu sobre ela, fazendo-a desaparecer entre suas hiantes maxilas. O Dr. Maracot sentou-se com sua caderneta de notas no joelho, rabiscando rapidamente suas observações e monologando à meia voz comentários científicos. «Que será aquilo?» ouvia-o dizer. «Sim, sim, Chimoera mirabilis, como as obtidas por Michael Sars. Aquele deve ser certamente um lepidion. Uma nova espécie, ao que me parece. Observe aquele macrurus, Sr. Headlei; sua cor é completamente diversa da daquele que pegamos na rede.» Apenas uma vez o espanto o paralisou. Foi quando um longo objeto oval desceu velozmente em frente de sua vidraça, deixando uma cauda vibrátil atrás de si, que se estendia para cima e para baixo tão longe quanto podíamos avistar. Confesso que fiquei tão intrigado como o Dr. Maracot; mas Bill Scanlan esclareceu o mistério.
— Pelo que vejo aquele tonto de John Sweeney resolveu lançar sua sonda ao nosso lado. Uma brincadeira, decerto, para não nos sentirmos muito sós.
— Tem razão, exclamou Maracot rindo-se, Plumbus longicaudatus — um novo gênero, Sr. Headlei, com uma cauda de aço e chumbo no nariz. Mas não deixa de ser prudente fazerem sondagens para se conservarem bem em cima da elevação a que queremos chegar, que não é muito extensa. Pronto, capitão! gritou ele. Pode continuar a descer-nos!
E descemos cada vez mais. O Dr. Maracot apagou as luzes e tudo voltou à escuridão de antes, exceto o quadrante luminoso do batímetro que, com o movimento de seu ponteiro, registrava nossa descida contínua. Salvo uma leve oscilação de nossa caixa, quase não tínhamos consciência do movimento. Apenas aquele indicador sobre o quadrante nos revelava a situação temerosa e inconcebível em que nos encontrávamos. Achávamo-nos agora à profundidade de mil pés e o ar se tornava sensivelmente viciado. Scanlan lubrificou a válvula do tubo de descarga e a situação melhorou. A mil e quinhentos pés paramos novamente, suspensos no meio do oceano, com nossas luzes novamente acesas. Uma grande massa negra passou por nós, mas se seria um peixe-espada, um tubarão das grandes profundidades ou algum monstro de espécie desconhecida, foi-nos impossível determinar. O Dr. Maracot apagou rapidamente as luzes.
— É nisso que consistem nossos maiores riscos, disse ele; existem nas grandes profundidades entes contra cujo ataque esta caixa de aço teria tantas probabilidades de resistir como uma colméia à investida de um rinoceronte.
— Baleias, talvez, sugeriu Scanlan.
— As baleias podem realmente descer a grandes profundidades, respondeu o sábio. Viu-se mesmo uma baleia da Groenlândia arrastar consigo uma milha de corda em direção perpendicular. Mas só mesmo ferida ou muito atemorizada é que uma baleia desceria tanto. Poderia ter sido um polvo gigantesco. São encontrados em todos os níveis.
— Bem, por esse lado não temos o que temer. Os polvos são moles demais para nos fazer mal. Queria ver o polvo capaz de furar o aço niquelado de Merribank.
— Seus corpos podem ser moles, respondeu o professor, mas o bico de um grande polvo pode furar até uma lâmina de aço e arrebentaria essas vidraças de uma polegada de espessura como se fossem pergaminho.
— Vamos Whittaker! gritou Bill — e continuamos nossa jornada vertical.
Por fim, suavemente, quase sem o sentirmos, a caixa se imobilizou. Tão leve fora o choque que nem teríamos dado pela parada se quando a luz se acendeu não nos tivesse mostrado grandes alças do cabo suspensor que caíam aos lados da nossa caixa de aço. Isto poderia tornar-se perigoso para os tubos de ar, por isso, a um brado incisivo de Maracot, foi o mesmo novamente içado. O mostrador marcava mil e oitocentos pés. Repousávamos sobre uma elevação vulcânica no fundo do Oceano Atlântico.
Durante algum tempo creio que sentimos todos a mesma impressão. Não pensávamos em ver nem em fazer coisa alguma. Desejávamos apenas, sentados em silêncio, procurar conceber aquela coisa espantosa — que nos encontrávamos bem no fundo de um dos grandes oceanos da Terra. Mas logo o estranho cenário que nos rodeava, iluminado em todas as direções pelas nossas luzes, arrastou-nos aos postigos. Havíamos descido sobre um leito de altas algas (Cutleria multifida, disse Maracot) cujas hastes amarelas ondeavam ao nosso redor, movidas por alguma corrente submarina profunda, exatamente como as ramagens de uma árvore se agitariam ao sopro de uma brisa de verão. Seu comprimento não dava para perturbar nossa visão, se bem que suas longas e finas folhas dourado-escuras passassem às vezes à frente de nossos olhos. Para além delas estendiam-se pequenas ondulações de um chão escuro, como coberto de escumalho, recobertas de seres de cores variegadas, holotúrias, ascídias e equinodermas, numa profusão maior que a dos jacintos e primaveras de um prado inglês num dia primaveril. Estas flores animadas do mar, algumas de um escarlate vivo, outras cor de púrpura ou de um róseo delicado, estendiam-se inumeráveis contra o fundo negro do chão. Aqui e além grandes esponjas se elevavam das fendas das rochas escuras e alguns peixes das médias profundidades, passando como relâmpagos de cor, atravessavam rápidos nosso círculo de luz. Estávamos a admirar deslumbrados a beleza daquele espetáculo quando ouvimos uma voz ansiosa perguntar pelo telefone:
— Então, como se sentem aí no fundo? Tudo está bem? Não se demorem muito, que o tempo não está me parecendo de bom agouro. Estão respirando com facilidade? Há mais alguma coisa que eu possa fazer pelos senhores?
— Tudo vai indo o melhor possível, capitão! gritou Ma-racot jovialmente. Não nos demoraremos muito. Estamos tão confortavelmente como em nossa cabina. Faça agora com que nos movam lentamente para a frente.
Havíamos chegado à região dos peixes luminosos e resolvemos por isso apagar nossas luzes para naquela absoluta escuridão que nos cercava — uma escuridão tal que uma placa sensível poderia aí permanecer durante uma hora sem que revelasse o mais leve traço de raios ultravioleta — contemplarmos a atividade fosforescente do oceano. Contra um fundo de um negro veludíneo viam-se pequenos pontos brilhantes movendo-se rapidamente, como as luzes dos postigos de um paquete à noite. Um monstro marinho qualquer possuía duas fileiras de dentes luminosos que se aproximavam e afastavam na escuridão de maneira assustadoramente bíblica. Outro era provido de antenas douradas e outro ainda de um penacho flamejante acima da cabeça. Até onde nossa vista alcançava, víamos pontos brilhantes luzindo nas trevas, cada pequeno ser ocupado consigo mesmo e iluminando seu caminho com tanta segurança como um táxi à hora do teatro no Strand. Mas logo depois acendíamos novamente nossas luzes e o doutor recomeçava suas observações sobre o fundo do mar.
— Apesar de já termos atingido uma boa profundidade, ainda não é suficiente para se estudar nenhum dos depósitos báticos característicos, disse ele. Estes estão inteiramente fora de nosso alcance por enquanto. Talvez que em outra ocasião, com um cabo mais longo…
— Desista disso! grunhiu Bill Scanlan. Esqueça essa idéia!
Maracot sorriu.
— Logo te aclimatarás com as grandes profundidades, Scanlan. Não será esta nossa única descida.
— A outra será para o inferno, sem dúvida! murmurou Bill.
— Mais tarde não darás mais importância a isto que a uma descida ao porão do «Stratford». Observe, Sr. Headlei, que o terreno sobre o qual estamos — pelo que dele podemos ver entre essa profusão de zoófitos e esponjas silicosas — é constituído de pedra-pomes e que essas formações pretas de basalto indicam remotas atividades plutônicas. Estou realmente inclinado a supor que esta elevação faz parte de uma formação vulcânica e que o Pélago de Maracot — disse ele enunciando amorosamente este título — representa a vertente desta montanha. Pensei que deveria ser uma interessante experiência mover vagarosamente nossa caixa até chegarmos à borda do mesmo, para ver as formações que existem nesse ponto. Esperaria encontrar um precipício de majestosas dimensões descendo em ângulo quase reto até as extremas profundezas do oceano.
Esta idéia me parecia um tanto perigosa, pois era difícil avaliar até que ponto nosso delgado cabo resistiria ao esforço deste movimento de lateralidade; mas para Maracot não existia em absoluto perigo nem para si nem para outrem quando tinha de ser feita uma observação científica. Prendi a respiração e o mesmo vi que fazia Bill Scanlan, quando um lento movimento de nossa caixa de aço dobrando à sua frente as hastes ondulantes das algas marinhas nos mostrou que enorme força de tração estava forçando o cabo. Este, contudo, suportou nobremente a prova e com um suave movimento começamos a deslizar lentamente pelo fundo do oceano. Maracot, com um compasso na mão, dava ordens quanto ao trajeto a seguir, ordenando uma ou outra vez que elevassem nossa caixa para evitar algum obstáculo do caminho.
— Esta elevação basáltica não pode ter mais de uma milha de extensão, explicou ele. Observei que o abismo devia achar-se a oeste do ponto em que fizemos nossa descida. Creio por isso que certamente chegaremos aí dentro de um tempo muito curto.
Deslizamos sem solavancos sobre aquela planície vulcânica, tapetada de algas e aformoseada pelas admiráveis jóias vivas com que a Natureza a ornara. Subitamente o professor precipitou-se para o telefone.
— Pare! bradou. Já chegamos!
Um medonho pego se abrira subitamente à nossa frente. Parecia uma visão de pesadelo. Penedias negras e brilhantes de basalto aprofundavam-se perpendicularmente no desconhecido. Suas bordas eram debruadas de finas laminárias oscilantes, semelhantes às samambaias que pendem nas bordas dos abismos terrestres, mas abaixo daquela orla movediça de vegetação só se viam as negras paredes luzidias do pélago. Víamos de cada lado estenderem-se as bordas deste enorme abismo até onde a vista alcançava, mas não podíamos avaliar sua extensão, pois nossas lâmpadas não conseguiam penetrar a obscuridade que estava à nossa frente. Quando voltamos uma lâmpada Lucas de sinais para baixo, vimos uma longa sucessão de declives que desciam, desciam, desciam até perder-se nas profundezas obscuras daquela tremenda voragem.
— É realmente admirável! exclamou Maracot com uma expressão satisfeita de proprietário no rosto magro e vivo. Quanto à profundidade, não necessito dizer que há muitos que o excedem. Temos, por exemplo, o Pélago de Challenger, de vinte e seis mil pés, próximo das Ilhas Ladrone; o Pélago de Planet, de trinta e dois mil pés, perto das Filipinas e muitos outros, mas é provável que o Pélago de Maracot seja sem igual quanto ao declive de suas margens, tendo ainda de notável o fato de ter escapado às pesquisas de tantos exploradores hidrográficos que estudaram o Atlântico. Sem a menor dúvida…
Ele interrompera a frase em meio e uma expressão de intenso interesse e surpresa se imprimira em seu rosto. Bill Scanlan e eu, olhando por sobre os seus ombros, ficamos petrificados com o espetáculo que se deparou a nossos olhos.
Um enorme animal vinha subindo pelo túnel de luz que projetáramos no abismo. Bem ao longe, onde mal a luz alcançava, podíamos ver vagamente os movimentos irregulares de seu monstruoso corpo negro, em lenta ascensão. Caminhava de maneira desgraciosa, e aproximava-se com movimentos tardos das bordas do precipício. Agora que se aproximara mais estava iluminado em cheio pela luz e podíamos ver mais claramente suas formas horrendas. Era um animal desconhecido à ciência, embora apresentasse analogias com muitos seres que nos são familiares. Seu corpo era longo demais para ser comparável ao de um caranguejo gigantesco e curto demais para uma lagosta monstruosa; era mais parecido com um caranguejo de água doce, armado com suas duas enormes pinças, estendida uma de cada lado, e era provido de um par de antenas de dezesseis pés de comprimento, que se agitavam à frente de seus sinistros olhos negros. A carapaça de cor amarela pálida deveria ter dez pés de largura e seu comprimento total, excetuadas as antenas, não teria menos que trinta pés.
— Espantoso! exclamou Maracot, rabiscando desesperadamente em sua caderneta de notas. Olhos semipediculados, lamelas elásticas, família crustácea, espécie desconhecida. Crustaceus Maracoti — por que não?
— Co'os diabos, dê o nome que quiser, mas o fato é que ele está vindo para o nosso lado! exclamou Bill. Que acha de apagarmos nossas luzes, doutor?
— Apenas um momento enquanto anoto as reticulações, gritou o naturalista. É exatamente isso, não há dúvida. — Apertou o interruptor e voltamos à escuridão anterior, com aqueles pontos luminosos riscando a escuridão como meteoros numa noite sem lua.
— Aquele bicho tem uma aparência bem feroz, disse Bill. enxugando a testa. A impressão que tenho é a de uma ressaca depois de uma boa garrafa de Hoosh.
— Seu aspecto é realmente bem terrível, observou Maracot, e talvez fosse ainda mais terrível termos de nos avir com ele, se estivéssemos expostos àquelas monstruosas tenazes. Mas de dentro de nossa caixa de aço podemos examiná-lo em segurança e à vontade.
Mal havia falado quando se ouviu uma pancada como de uma picareta do lado de fora de nossa parede. Logo em seguida um longo som áspero como se a estivessem raspando e arranhando e uma outra pancada violenta.
— Ele quer entrar! exclamou Bill Scanlan, em tom alarmado. Co'os diabos, devíamos ter pintado do lado de fora um «É proibida a entrada». Sua voz trêmula mostrava como era forçado seu gracejo e confesso que meus joelhos tremiam ao ver a sombra negra daquele monstro passar sucessivamente em frente de cada uma das janelas que ele ainda mais escurecia, a examinar aquela estranha concha que, se conseguisse quebrar, deveria conter o seu alimento.
— Ele não nos poderá fazer mal — disse Maracot, mas havia agora menos segurança no tom de sua voz. — Contudo, talvez seja melhor nos afastarmos dele.
Chegando perto do tubo telefônico, gritou ao capitão:
— Eleve-nos uns vinte ou trinta pés!
Poucos segundos depois, éramos levantados da planície de lava e balançávamos suavemente na água. Mas o terrível monstro era pertinaz. Após um intervalo muito curto, ouvíamos novamente o raspar de suas antenas e as batidas fortes de suas tenazes, a examinar nossa caixa. Era horrível aquela espera silenciosa na escuridão, sabendo-se que a morte estava tão próxima. Se aquelas pinças poderosas caíssem sobre as vidraças resistiriam estas ao choque? Era esta a pergunta inexpressa que passava pelo espírito de todos nós.
Mas subitamente um perigo inesperado e ainda mais temível se apresentou. Aqueles golpes haviam passado para a parte superior de nosso pequeno compartimento e este começara a balançar ritmicamente de um lado para outro.
— Santo Deus! exclamei. Ele agarrou o cabo! Seguramente o cortará!
— Olhe, doutor, acho melhor subirmos. Creio que já vimos o que viemos ver e é melhor voltarmos para nossas casas. Mande subir o elevador e deixemo-nos de brincadeiras com esse bicho.
— Mas ainda não fizemos nem metade do nosso trabalho! grasnou Maracot. Mal começamos a explorar as bordas do Pélago. Pelo menos vejamos qual é a sua largura. Quando tivermos chegado ao outro lado dar-me-ei por satisfeito. — Voltou-se para o tubo: — Tudo bem, capitão. Navegue a dois nós horários até eu ordenar que pare.
Começamos a nos mover lentamente afastando-nos da borda do abismo. Desde que a escuridão não nos salvara do ataque, resolvemos acender as luzes novamente. Um dos postigos estava inteiramente obscurecido pelo que parecia ser o ventre do monstruoso crustáceo. Sua cabeça e suas grandes pinças estavam em ação acima de nós e ainda continuávamos a balançar de um para outro lado, como um sino a badalar. A força daquele animal deveria ser enorme. Quando um grupo de homens já se teria visto em tal situação, com cinco milhas de água abaixo e um tão horrível monstro acima? As oscilações se tornavam cada vez mais violentas. Ouvimos pelo tubo a voz agitada do capitão que notara os balanços do cabo e Maracot pôs-se de pé num pulo com as mãos estendidas desesperadamente para cima. Mesmo de dentro de nossa caixa percebemos o ruído dos fios do cabo arrebentando e dali a um instante tombávamos no desmesurado pego que se abria a nossos pés.
Quando volto o olhar para aquele horrível instante, recordo-me como num sonho de ter ouvido um brado selvagem de Maracot.
— O cabo partiu-se! Nada podem fazer! Estamos todos perdidos! gritava ele agarrado ao telefone. Adeus, capitão, adeus a todos!
Foram estas as nossas últimas palavras ao mundo dos homens. Não caímos rapidamente, como poderias imaginar. Apesar do peso de nossa caixa, o fato de ser oca tornava-a relativamente leve e era por isso lenta e suavemente que mergulhávamos no abismo. Ouvimos um som áspero ao escaparmos por entre as garras do horrível monstro que fora nossa ruína e despencamos com um lento movimento giratório pelas profundezas abissais. Deviam ter decorrido cinco minutos, que contudo nos pareceram uma hora, até o momento em que alcançamos o limite de nosso fio telefônico, que foi arrebentado como se fosse um fio de linha. Nossos tubos de ar romperam-se quase ao mesmo tempo e a água salgada penetrou em jorros pelos orifícios interiores dos mesmos. Com movimentos rápidos e prontos, Bill Scanlan amarrou cordas ao redor de cada um dos tubos de borracha e assim interrompeu a inundação que se iniciava, enquanto o doutor soltava o nosso ar comprimido, que saiu silvando dos tubos. A luz se apagara quando o fio arrebentou, mas mesmo no escuro Maracot conseguiu pôr em atividade as pilhas secas de Hellesens, que acenderam algumas lâmpadas do teto.
— Darão para uma semana, disse ele com um sorriso forçado. Pelos menos não morreremos no escuro. — Sacudiu a cabeça tristemente e um sorriso de compaixão perpassou-lhe pelas feições pálidas. — Que isto sucedesse a mim era justo. Sou um homem velho e já vivi demais. Só lamento é ter trazido comigo dois jovens cheios de vida. Deveria ter corrido o risco sozinho.
Limitei-me a apertar sua mão para confortá-lo, pois na verdade não havia nada que eu pudesse dizer. Bill Scanlan também permaneceu silencioso. Lentamente mergulhávamos, tendo apenas consciência da nossa velocidade pelas sombras de peixes que víamos perpassar em frente de nossas janelas. Parecia antes serem eles que se precipitavam para cima do que nós que descíamos. Nossa caixa ainda continuava a oscilar e não havia nada que a impedisse de voltar-se de lado ou virar de cabeça para baixo. Seu peso, felizmente, estava distribuído de modo tal que o assoalho se conservava estàvelmente para baixo. Olhando para o batímetro, vi que já atingíramos a profundidade de uma milha.
— Como vê, sucede realmente o que eu previa, observou Maracot com alguma negligência. Certamente leu meu artigo nos Relatórios da Sociedade Oceanográfica sobre a relação existente entre a pressão e a profundidade. Desejava poder mandar ao mundo duas palavras, nem que fosse apenas para confundir Bulow de Giessen, que ousou contradizer-me.
— Co'os diabos! Se eu pudesse mandar de volta duas palavras para o mundo, não as gastaria com um careca qualquer, suspirou o mecânico. Há em Filadélfia uma bela pequena que derramará lágrimas quando souber que Bill Scanlan se foi. Mas enfim, não deixa de ser uma morte bem apresentável.
— Você não deveria ter vindo, disse eu tomando-lhe a mão.
— Mas que papelão não seria o meu se eu não viesse? replicou ele. Não, não, eu devia vir e estou satisfeito por ter vindo.
— Quanto tempo teremos de vida? perguntei ao doutor após uma pausa.
Ele encolheu os ombros.
— Sempre teremos tempo para ver o verdadeiro fundo do oceano, disse ele. Há em nossos tubos ar bastante para a maior parte de um dia. O que nos prejudicará mais serão os produtos residuais. Se nos pudéssemos libertar do anidrido carbônico…
— Isso vejo que é impossível.
— Há um tubo de oxigênio puro. Trouxe-o para caso de acidente. Um pouco disso de tempos a tempos servirá para nos prolongar a vida.
— Mas, para que prolongar a vida? Quanto mais depressa vier o desenlace melhor, disse eu.
— Isso mesmo, exclamou Scanlan. Acabemos com isto logo de uma vez.
— Deixando de contemplar o espetáculo mais extraordinário que olhos humanos já viram! exclamou Maracot. Seria uma traição à ciência. Observemos os acontecimentos até o fim, mesmo que o que virmos esteja condenado a permanecer para sempre enterrado em nossos corpos.
— Seja então, doutor! exclamou Bill Scanlan. Vejamos o espetáculo até o fim.
Sentâmo-nos os três pacientemente nos bancos, que acompanhavam as oscilações e giros de nossa caixa, segurando em suas bordas com os dedos contraídos, enquanto continuávamos a ver os peixes se precipitarem velozmente para cima através dos postigos.
— Já estamos a três milhas de profundidade, observou Maracot. Vou abrir a torneira de oxigênio, Sr. Headlei, pois este já se acha bem rarefeito. Pelo menos uma coisa é certa — acrescentou com sua risada áspera — é que certamente esta depressão se chamará Pélago de Maracot daqui por diante. Quando o Capitão Howie contar tudo, meus colegas reconhecerão que meu túmulo é também o meu monumento. Mesmo Bulow de Giessen… E articulou qualquer queixa científica ininteligível, que nenhum de nós ouviu.
Recaímos novamente em nosso silêncio, observando o ponteiro que caminhava agora para a quarta milha. A certo ponto batemos contra qualquer coisa que abalou tão violentamente nossa caixa, que receei se voltasse de lado. Poderia ter sido um enorme peixe ou então haveríamos possivelmente abalroado com alguma aresta de penedia contra a qual fôramos precipitados. Aquela borda que antes nos parecera tão assombrosamente profunda, parecia-nos agora, das profundezas em que nos achávamos, ser quase a superfície. Cada vez mais nos aprofundávamos, girando e girando por aquelas águas verde-negras. O quadrante registrava agora vinte e cinco mil pés.
— Estamos quase no fim de nossa jornada, disse Maracot. Meu indicador Scott deu-me vinte e seis mil e setecentos pés no ano passado, no ponto mais profundo. Dentro de poucos minutos se decidirá nossa sorte. É possível que sejamos esmagados pelo choque. É também possível…
E naquele momento chegamos ao fundo.
Nem uma criança colocada por sua mãe num leito de penas desceria aí mais suavemente do que nós no extremo fundo do Oceano Atlântico. A espessa e elástica camada de lodo sobre a qual caíramos comportou-se como um verdadeiro pára-choque, que nos preservou do mais leve abalo. Mal nos movêramos no banco em que nos achávamos e foi bom isto, pois descêramos sobre uma pequena elevação recoberta de uma densa camada daquela lama gelatinosa e oscilávamos brandamente de um lado para outro, com quase metade de nossa base em falso. Havia perigo de tombarmos de lado, mas finalmente nossa caixa se estabilizou, imobilizando-se. Assim que isto sucedeu, o Dr. Maracot, olhando através de seu postigo, deu um grito de surpresa e apagou rapidamente nossas luzes.
Observamos cheios de espanto que mesmo assim ainda podíamos ver claramente. Havia do lado de fora uma luz pálida e nevoenta que jorrava para o interior através dos postigos, como a fria claridade de uma manhã de inverno. Contemplávamos aquela estranha cena e sem auxílio de nossas luzes podíamos ver claramente até algumas centenas de jardas para todos os lados. Era impossível, inconcebível, mas a despeito de tudo nossos sentidos nos diziam que era uma realidade. O fundo do grande oceano é luminoso.
— Por que não? exclamou Maracot, após termos passado um minuto ou dois em muda contemplação. Pois não poderíamos ter previsto isso? O que representa este lodo de pterópodos ou globigerinas? Pois não é formado pelos produtos de degradação, pelos corpos conglutinados de bilhões e bilhões de seres orgânicos? E essa degradação não está comumente associada a fenômenos de fosforescência? Em que parte de toda a criação se poderia esperar encontrar tal espetáculo senão aqui? Ah! é realmente lamentável que tivéssemos ocasião de fazer tal verificação e nos seja impossível transmitir este nosso conhecimento ao mundo.
— Todavia, observei, nós conseguimos cerca de meia tonelada desta geléia de radiolários e não observamos tal luminosidade.
— Certamente a teria perdido em sua longa viagem para a superfície. Além disso, que representa meia tonelada comparada com estas extensas planícies de lenta putrescência? Mas veja, veja — exclamou ele subitamente cheio de agitação — os habitantes das grandes profundidades pastam sobre este tapete orgânico como nossos rebanhos da terra pastam nos prados!
Enquanto ele falava, um bando de peixes negros, de formas pesadas e achatadas, aproximava-se de nós, fossando entre saliências de aspecto esponjoso e mordiscando aqui e além no seu caminho. Um grande peixe vermelho, como uma estranha vaca do oceano, ruminava pacientemente seu alimento em frente de meu postigo, e outros estavam pastando aqui e além, levantando a cabeça de tempos a tempos para olhar aquele extravagante objeto que tão subitamente surgira entre eles.
Admirava-me o devotamento de Maracot, que sentado a respirar aquela atmosfera viciada, sob a sombra da morte próxima, ainda obedecia ao apelo da ciência e garatujava observações em sua caderneta. Embora sem seguir seu método preciso, tomava também minhas notas mentais que permanecerão para sempre estampadas como uma pintura em meu cérebro. As mais profundas planícies do oceano consistem em argila vermelha, mas, no lugar em que estávamos, esta era mascarada por uma camada daquele limo acinzentado, que formava uma planície ondulada até onde nossos olhos podiam alcançar. Esta planície não era inteiramente regular; apresentava numerosas e estranhas elevações como aquela em que nos achávamos, a luzir pàlidamente naquela luz espectral. Por entre estas pequenas colinas desfechavam grandes nuvens de estranhos peixes, muitos dos quais completamente desconhecidos à ciência, exibindo todas as tonalidades de cor, com predominância, contudo, do preto e do vermelho. Maracot observava-os com mal contida agitação e registrava-os em suas notas.
O ar se tornara muito viciado e novamente fomos obrigados a recorrer a um novo desprendimento de oxigênio. E o que é curioso é que estávamos positivamente esfomeados; caímos com a melhor boa vontade do mundo sobre o bife com pão e manteiga, regado a uísque e água com que a previdência de Maracot nos havia provido. Com os sentidos estimulados por esta refeição reconfortadora, sentara-me em frente ao meu postigo ansioso por um cigarro quando meus olhos caíram sobre qualquer coisa que acordou em meu espírito um turbilhão de pensamentos estranhos e reminiscências confusas.
Já disse que a planície que se estendia ao redor de nós estava coberta com elevações que pareciam pequenas colinas. À frente de meu postigo se elevava uma particularmente grande, e eu a via de uma distância de trinta pés. Havia num lado da mesma uma pequena marca, que, examinando melhor, verifiquei com grande surpresa que se repetia numerosas vezes ao seu redor, perdendo-se nas curvas do seu contorno. Quando se está tão próximo da morte, é difícil nos impressionarmos com qualquer coisa que se refira a este mundo, mas perdi o fôlego um momento e meu coração paralisou-se ao notar que era um friso ornamental aquilo que eu estava olhando, e que, apagadas e gastas como estavam, fora sem dúvida a mão do homem que esculpira em alguma remota era aquelas figuras. Maracot e Scanlan precipitaram-se para o meu postigo e contemplaram cheios de espanto aqueles sinais da onipresente energia humana.
— Isso foi esculpido, sem dúvida nenhuma! exclamou Scanlan. Calculo que aquilo deveria ter sido o teto de um edifício. Por conseguinte, os outros também deverão corresponder a outros tantos edifícios. Creio, patrão, que fomos cair bem no meio de um burgo qualquer.
— É realmente uma antiga cidade, disse Maracot. A geologia nos ensina que os mares já foram continentes e os continentes mares, mas eu sempre repelira a idéia de que em tempos tão recentes, dentro da era quaternária, se tivesse dado tal cataclismo no Atlântico. A lenda egípcia que Platão nos transmitiu tem portanto uma base real. Estas formações vulcânicas confirmam a opinião de que esta submersão tenha sido devida a atividades sísmicas.
— Há uma certa regularidade na disposição destas cúpulas, observei. Estou inclinado a supor que não sejam casas separadas, mas sim diferentes cúpulas pertencentes a um único e imenso edifício.
— Creio que tem mesmo razão, disse Scanlan. Há quatro maiores nos cantos e outras menores enfileiradas para dentro. Deve ser um edifício único — e de que tamanho! Caberia todo o Merribank e mais alguma coisa dentro dele.
— Foi enterrado até a altura do teto pelo depósito constante de materiais orgânicos vindos das camadas superiores das águas, observou Maracot. Por outro lado, estes não se decompuseram. Temos nas grandes profundidades uma temperatura constante um pouco superior a 32° Fahrenheit que impediria esses processos destrutivos. Mesmo a dissociação desses depósitos que cobrem o leito do oceano e o tornam luminoso deve ser muito lenta. Mas que vejo! Estes sinais não são frisos, mas sim inscrições!
Não havia a menor dúvida de que tinha razão. O mesmo símbolo repetia-se várias vezes aqui e além. Aqueles sinais eram certamente letras de algum alfabeto arcaico.
— Já fiz alguns estudos sobre antigüidades fenícias e vejo nesses caracteres alguma coisa que me é familiar, disse nosso chefe. Pois é isso, meus amigos, pudemos ver uma cidade soterrada de eras remotas e carregaremos conosco para o túmulo a imagem sugestiva desse espetáculo. Não há nada mais que nos interesse ver. Nosso livro de surpresas está fechado. Também concordo agora que quanto mais depressa chegar o fim tanto melhor será.
Este agora não poderia estar longe. A atmosfera que respirávamos era densa e viciada. Tão carregada estava ela de anidrido carbônico que o oxigênio mal podia vencer a pressão e sair dos tubos. Ficando de pé nos bancos, ainda se conseguia respirar um ar mais puro, mas aquela camada mais carregada de produtos impróprios à respiração elevava-se cada vez mais. O Dr. Maracot cruzou os braços em ar de resignação e deixou cair a cabeça sobre o peito. Scanlan já fora vencido e debatia-se agora no assoalho. Eu próprio já sentia a cabeça girar-me e um intolerável peso sobre o peito. Fechei os olhos e a consciência já me abandonava. Pela última vez abri-os para lançar um último olhar àquele mundo que já abandonava, mas, ao fazê-lo, endireitei-me, cambaleando e desferi um brado rouco de espanto.
Um rosto humano nos olhava através do postigo!
Seria o delírio? Agarrei Maracot pelos ombros e sacudi-o violentamente. Este levantou a cabeça e olhou paralisado e mudo de espanto para esta aparição. Se ele a via tão bem como eu, não deveria ser apenas uma criação de meu cérebro debilitado. O rosto era longo e fino, de tez amorenada, com uma barba curta e afilada e dois olhos vivos que lançavam de um para outro lado olhares inquisidores, como procurando inteirar-se de todos os detalhes de nossa situação. Via-se impresso nas suas feições o maior espanto. Nossas luzes estavam todas acesas e deveria ter sido realmente um espetáculo bem estranho e impressionante o que se lhe deparava naquela pequena câmara funerária, em que um homem jazia sem sentidos e dois outros o fitavam com feições contorcidas de moribundos, cianosadas pela asfixia incipiente. Nós ambos tínhamos as mãos presas às nossas gargantas e nossos peitos arfantes mostravam bem a angústia que já começara a empolgá-los. O homem fez um gesto com a mão e afastou-se velozmente.
— Ele nos abandonou! exclamou Maracot.
— Ou foi em busca de auxílio. Vamos pôr Scanlan sobre o banco. Ele morrerá logo se o deixarmos no chão.
Arrastamos o mecânico para o banco e fizemos sua cabeça repousar sobre as almofadas. Seu rosto estava purpurado e murmurava em seu delírio frases ininteligíveis, mas o pulso era ainda perceptível.
— Ainda existe esperança para nós, exclamei em voz rouca.
— Mas é loucura! disse Maracot. Como poderia o homem viver no fundo do oceano? Como respiraria? Deve ter sido uma alucinação coletiva. Meu jovem amigo, estamos enlouquecendo.
Olhando para a paisagem sombria e deserta que nos cercava, iluminada por aquela luz frígida e espectral, senti que bem poderia ser que Maracot tivesse razão. Mas subitamente percebi movimento. Sombras se agitavam ao longe, através da água. Agora que se haviam aproximado mais, já podia enxergar vultos distintos caminhando numa massa movediça. Uma multidão de pessoas adiantava-se rapidamente em nossa direção pelo leito do oceano. Dali a um instante se achavam reunidos em frente do postigo e apontavam e gesticulavam em animado debate. Havia várias mulheres entre eles, mas na sua maior parte eram homens, um dos quais, uma imponente figura com uma grande cabeça e basta barba negra, via-se claramente ser uma espécie de chefe. Fez uma rápida inspeção da nossa caixa de aço, e, como parte da base da mesma fazia saliência para fora da elevação em que estávamos, ele pôde ver que havia um alçapão no fundo. Fez voltar um mensageiro correndo, enquanto nos fazia enérgicos e instantes sinais para que abríssemos a porta do lado de dentro.
— Por que não? perguntei. Tanto nos faz morrer afogados como de qualquer outro modo. Não suportarei isto mais tempo.
— Não poderemos ser afogados, disse Maracot. A água entrando por baixo não se poderá elevar acima do nível do ar comprimido. Dê um gole de brande a Scanlan. Ele deve fazer mais um esforço, nem que seja o último.
Despejei um pouco de bebida reconfortante pela boca do mecânico. Ele a engoliu e olhou ao seu redor com olhos surpreendidos. Sustentamo-lo de pé, segurando-o cada um de um lado. Ainda estava meio tonto, mas em poucas palavras expliquei-lhe a situação.
— Há a possibilidade de um envenenamento pelo ácido clorídrico se a água atingir as baterias, disse Maracot. Abra todos os tubos de ar, pois quanto maior a pressão que conseguirmos tanto menor será a quantidade de água que entrará. Agora ajude-me a mover a alavanca.
Pusemos sobre ela todo o nosso peso e levantamos o alçapão circular do fundo, se bem que isto me parecesse como um suicídio enquanto o fazia. A água verde, brilhando sob as nossas luzes, precipitou-se borbulhante pela abertura. Galgou rapidamente nossos pés, nossos joelhos, nossa cintura e aí parou. Mas a pressão do ar era intolerável. Nossos ouvidos zumbiam e sentíamos a cabeça girar. Não poderíamos viver muito tempo em tal atmosfera. Apenas agarrando-nos às saliências da parede é que conseguíamos deixar de tombar na água que se estendia abaixo de nós.
Da posição mais alta em que nos colocáramos não podíamos mais olhar através dos postigos nem podíamos imaginar as providências que estavam sendo tomadas para nossa libertação. Parecia absurdo esperar que nos pudessem prestar algum auxílio efetivo, mas havia qualquer coisa na atitude resoluta daquela gente, e especialmente na daquele chefe, que inspirava vagas esperanças. Subitamente percebemos seu rosto a espiar-nos debaixo, através das águas, e, dali a um instante, ele passava através da abertura circular do alçapão e subia sobre o banco, postando-se ao nosso lado. Não era mais alto que meu ombro e nos olhava com grandes olhos castanhos, que exprimiam jovial confiança e pareciam dizer: «Pobres coitados! Vocês se julgam em situação desesperadora, mas eu saberei libertá-los».
Só agora notava uma circunstância surpreendente. Aquele homem — se realmente era da mesma humanidade que nós — estava munido de um invólucro transparente que lhe recobria a cabeça e o corpo, ao passo que deixava seus braços e pernas livres. Tão transparente era o mesmo que não se conseguia distingui-lo na água, mas agora que se achava ao nosso lado luzia com um brilho metálico, se bem que permanecesse tão límpido como o mais puro cristal. Em cada ombro trazia um curioso objeto arredondado, abaixo do invólucro protetor. Era uma espécie de caixa oblonga, atravessada por numerosos orifícios, que lhe davam a aparência de estar usando dragonas.
Depois de nosso amigo se haver reunido a nós, apareceu outro rosto na abertura do fundo e atirou para cima qualquer coisa semelhante a uma grande bola de vidro. Três destas foram sucessivamente passadas pelo fundo de nossa caixa e flutuaram sobre a superfície da água. Seis pequenas caixas foram em seguida entregues ao nosso novo amigo, que prendeu uma a cada um de nossos ombros, como as que ele mesmo trazia. Começava já a suspeitar de que possivelmente não haveria infração das leis naturais na vida daquele estranho povo e que enquanto uma das caixas era de qualquer maneira produtora de ar, a outra absorveria os produtos residuais. Tomando aquelas vestes transparentes ele as passou sobre nossas cabeças e sentimos que no-las prendia firmemente nos braços e na cintura por meio de faixas elásticas, de modo que nenhuma água pudesse penetrar. Respirávamos no interior com toda a facilidade e fiquei alegre ao ver que Maracot me olhava detrás de seus óculos com seu olhar vivo do costume, enquanto a fisionomia de Bill Scanlan me assegurava que o oxigênio vivificante havia feito sua obra e que ele voltara a ser o mesmo ente jovial de sempre. Nosso salvador olhou para cada um de nós em ar de grave satisfação e em seguida nos acenou para que o seguíssemos através do alçapão para o leito do oceano. Uma dezena de mãos prestadias se ofereceram para nos ajudar a sair e amparar nossos primeiros passos vacilantes por aquele chão pouco firme.
Até agora ainda isso me maravilha! Achávamo-nos os três sãos e salvos no fundo de um abismo coberto por cinco milhas de água. Onde estava a terrível pressão a que se referiam tantos cientistas? Não nos sentíamos mais incomodados por ela que os delicados peixes que nadavam ao nosso redor. É verdade que nossos corpos se achavam protegidos por aqueles delicados invólucros de vidrina que eram realmente mais resistentes que o aço mais forte, mas mesmo em nossos membros, que estavam inteiramente expostos, nada mais sentíamos além de uma impressão de constrição forte mas facilmente tolerável por parte da água, que com o tempo se aprendia a ignorar. Era um belo espetáculo o que se deparou a nossos olhos quando reunidos fora olhamos para o compartimento de que havíamos saído. Havíamos deixado as baterias em ação e era um espetáculo impressionante vê-lo irradiando jorros de luz dourada para todos os lados, enquanto nuvens de peixes enxameavam em frente de cada postigo. Em dado momento, enquanto ainda o observávamos, o chefe tomou Maracot pela mão e nós os seguimos através do pântano submarino, caminhando pesadamente sobre sua superfície viscosa.
Subitamente ocorreu um incidente inesperado e surpreendente, que causou tanto espanto a estes nossos estranhos companheiros como a nós mesmos. Acima de nossas cabeças apareceu um pequeno objeto escuro, que desceu da escuridão que havia acima até atingir o leito do oceano a uma pequena distância do lugar em que nos achávamos. Era a sonda de grandes profundidades do «Stratford» que explorava aquele abismo submarino com o qual o nome da expedição deveria ser associado. Já a havíamos visto quando a tinham lançado e era-nos fácil compreender que a tragédia de nosso desaparecimento deveria ter suspendido a operação, mas que após uma pausa havia sido prosseguida sem que pudessem suspeitar que iria findar quase a nossos pés. Parecia que eles não haviam percebido ter tocado o fundo, pois a sonda de chumbo permanecia imóvel sobre a lama do solo. Acima de mim se estendia o fio de aço que ia ter através de cinco milhas de água ao convés do navio. Ah! se fosse possível escrever um bilhete e prendê-lo no cabo da mesma! Esta idéia era absurda, mas não seria possível enviar um sinal que mostrasse estarmos ainda vivos? Meu paletó estava coberto pelo invólucro de vidro e por isso não podia mexer-lhe nos bolsos, mas da cintura para baixo eu estava livre e por sorte tinha meu lenço num bolso da calça. Tomei o mesmo e amarrei-o acima do lastro de chumbo da sonda. O lastro separou-se por seu mecanismo automático e dali a pouco via meu lenço branco subindo velozmente para aquele mundo que pode muito bem ser que nunca mais eu veja. Nossos novos amigos examinaram aquelas setenta e cinco libras de chumbo com grande interesse, levando-as consigo quando recomeçamos nossa jornada.
Caminháramos apenas algumas centenas de jardas por entre as elevações que observáramos antes, quando paramos à frente de uma pequena porta quadrada com sólidos pilares de cada lado e uma inscrição ao alto. Estava aberta a passagem através dela para uma grande sala vazia. Possuía uma porta corrediça movida de dentro por uma alavanca, que se fechou logo depois que entramos. Não podíamos ouvir nada de dentro de nossos capacetes de vidro, mas no fim de alguns minutos observamos que uma poderosa bomba deveria estar em ação, pois víamos o nível da água baixando rapidamente acima de nossas cabeças. Em menos de um quarto de hora já nos achávamos a seco sobre o úmido pavimento de pedra, tratando nossos novos amigos de nos libertar de nossas vestes transparentes. Dali a um instante já nos achávamos respirando ar perfeitamente puro numa atmosfera quente e bem iluminada, enquanto os trigueiros habitantes do abismo, sorrindo e chalrando alegremente, se aglomeravam ao nosso redor apertando-nos as mãos e batendo-nos amistosamente nas costas. A linguagem que eles falavam era estranha e áspera e não conseguíamos compreender nada do que diziam, mas o sorriso de seus rostos e a expressão amiga de seus olhos eram bem compreensíveis mesmo debaixo daquela desmesurada espessura de águas. As vestimentas de vidro foram penduradas em cavilhas marcadas da parede e aquela multidão benevolente conduziu-nos para uma porta que havia para dentro e que dava para um longo corredor descendente. Quando esta novamente se fechou atrás de nós, nada mais havia para nos lembrar do espantoso fato de sermos os hóspedes involuntários de uma raça desconhecida no fundo do Oceano Atlântico, e estarmos para sempre separados do mundo a que pertencíamos.
Agora que nosso estado de tensão nervosa fora tão subitamente afrouxado, sentíamo-nos todos exaustos. Mesmo Bill Scanlan, que era um pequeno Hércules, arrastava os pés pelo chão, ao passo que eu e Maracot nos apoiávamos de bom grado em nossos guias. Apesar de cansado como estava, observei minuciosamente tudo o que nos cercava. Era mais que evidente que o ar deveria provir de aparelhos especiais, pois saía em jactos de orifícios circulares das paredes. A luz era difusa e deveria claramente ser uma utilização, em maior escala, daquele sistema fluorescente que já começara a chamar a atenção dos engenheiros europeus e que dispensava filamento e lâmpada. Irradiava de longos cilindros de vidro claro suspensos ao longo das cornijas dos corredores. Tudo isso pude observar até que nossa descida se interrompeu e fomos introduzidos num grande salão coberto de espessos tapetes e bem mobilado com cadeiras douradas e sofás inclinados, que relembravam qualquer coisa dos túmulos egípcios. A multidão fora despedida e só permaneciam conosco o chefe e dois servidores. Batendo no próprio peito repetiu várias vezes a palavra «Manda». Em seguida apontou cada um de nós por sua vez e repetiu as palavras Maracot, Headlei e Scanlan até aprendê-las perfeitamente. Fez-nos em seguida sinal para que permanecêssemos sentados e disse uma palavra a um dos servidores, que saiu do salão e voltou dali a pouco acompanhado de um homem idoso, de cabelos brancos e barba longa, com um curioso chapéu cônico de pano preto sobre a cabeça. Deveria ter dito antes que todos eles usavam túnicas de cores que lhes desciam até os joelhos e botas muito altas de pele de peixe. O venerável recém-vindo era certamente um médico, pois examinou cada um de nós por sua vez, colocando sua mão sobre nossas testas e fechando os próprios olhos, como a receber uma impressão mental quanto ao nosso estado. Ao que parecia não ficou muito satisfeito com este exame, pois abanou a cabeça e disse gravemente algumas palavras a Manda. Este deu uma nova ordem ao criado, que trouxe uma bandeja com alimentos e uma garrafa de vinho, que foram colocados à nossa frente. Estávamos cansados demais para nos importarmos com o que pudessem ser aquelas iguarias, mas não deixamos por isso de apreciá-las devidamente. Em seguida nos levaram para outro salão onde haviam sido preparadas três camas, e aí chegados atirei-me sobre uma delas. Tenho uma vaga lembrança de que Bill Scanlan veio sentar-se ao meu lado.
— Olhe, Bo, aquele gole de brande me salvou a vida, disse ele. Mas, diga-me; onde estaremos nós?
— Não sei melhor que você.
— Não faz mal, depois conheceremos melhor essa gente, disse ele em voz sonolenta, voltando-se para sua cama. Mas aquele vinho era mesmo bom. Graças a Deus, Volstead nunca desceu aqui!
Foram estas as últimas palavras ouvidas por mim antes de cair no sono mais pesado que me lembro de ter dormido.
Quando voltei a mim, a princípio não pude compreender onde me encontrava. Os acontecimentos do dia anterior me pareciam um pesadelo incrível, e não me podia convencer de que teria de aceitá-los como a expressão da realidade. Relanceei surpreendido aquela grande sala vazia e sem janelas, de paredes pardacentas, aquelas linhas de trêmula luz púrpura que jorrava das cornijas, aquelas parcas peças de mobiliário e finalmente os dois outros leitos, de um dos quais vinha um ressonar forte que eu a bordo do «Stratford» aprendera a associar com a pessoa de Maracot. Tudo aquilo era extravagante demais para ser verdadeiro e só quando tomei entre os dedos as cobertas de minha cama e examinei o curioso material de que eram feitas — fibras secas de alguma planta marinha — é que me convenci da realidade da inconcebível aventura que nos sucedera. Ainda estava refletindo sobre isso quando ouvi uma gargalhada estrondosa e Bill Scanlan se sentou na cama.
— Bom dia, Bo! gritou ele rindo, ao ver que eu estava acordado.
— Você me parece em boa disposição de espírito, disse eu, um tanto mal-humorado. Não vejo muitas razões para riso, meu amigo.
— Ah! eu também me achava com pouca disposição para rir quando acordei, replicou ele. Mas depois me veio à cabeça um pensamento engraçado e foi o que me provocou riso.
— Pois então me conte o que foi para que eu ria também.
— Pensei que estupendo não seria se todos nós nos tivéssemos amarrado àquela sonda. Acho que com aqueles aparelhos de vidro poderíamos respirar perfeitamente. Quando o velho Howie olhasse para baixo veria nós todos subindo numa penca através das águas. Decerto ele haveria de supor que nos tinha fisgado. Seria impagável!
Nossas risadas acordaram o doutor, que se sentou no leito tendo no rosto a mesma expressão de surpresa que antes houvera no meu. Cheguei até a esquecer nossas preocupações ao ouvir seus comentários volúveis que se alternavam entre uma alegria profunda ante a perspectiva de tal campo para estudos e a imensa tristeza de nunca poder esperar transmitir os resultados de suas pesquisas aos seus confrades da terra. Por fim voltou às necessidades do momento.
— São nove horas, disse ele olhando para o relógio. Todos os nossos relógios marcavam a mesma hora, mas não havia nada para nos indicar se seriam da noite ou da manhã.
— Devemos conservar nosso calendário, disse Maracot; descemos no dia 3 de outubro. Chegamos a este lugar na tarde do mesmo dia. Quanto tempo dormimos?
— Co'os diabos, poderia ter sido um mês! redargüiu Scanlan. Nunca dormi tão profundamente desde que Mickey Scott me pôs nocaute num encontro em seis assaltos lá nas obras.
Nós nos vestimos e lavamos, pois tínhamos à mão todos os confortos da civilização. A porta, porém, estava fechada e era evidente que por enquanto estávamos prisioneiros. Apesar da aparente ausência de ventilação, a atmosfera se conservava perfeitamente respirável, o que observamos ser devido a uma corrente de ar que penetrava, por pequenos orifícios da parede. Deveria também haver alguma fonte central de calor, pois, apesar de não se ver nenhum aquecedor, a temperatura era agradàvelmente cálida. Em dado momento observei um botão em uma das paredes e apertei-o. Era, como eu esperava, uma campainha, pois a porta se abriu imediatamente e apareceu um pequeno homem de tez escura, vestido com uma túnica amarela. Olhou-nos inquisidoramente com grandes olhos castanhos e amigos.
— Estamos com fome, disse Maracot; pode arranjar-nos algum alimento?
O homem abanou a cabeça e sorriu. Era evidente que aquelas palavras eram incompreensíveis para ele.
Scanlan tentou fazer-lhe compreender sua algaravia ianque que foi recebida com o mesmo sorriso pálido. Quando, porém, abri a boca e enfiei o dedo por ela a dentro, o homem sacudiu vigorosamente a cabeça em ar de compreensão e afastou-se rapidamente.
Dali a dez minutos a porta se abria e dois criados de tez amorenada como o primeiro apareceram, empurrando uma pequena mesa de rodas à sua frente. Mesmo que estivéssemos no Biltmore Hotel não teríamos uma refeição mais agradável. Havia café, leite quente, pão, delicioso peixe e mel. Por meia hora permanecemos ocupados demais para nos importarmos em indagar o que comíamos ou como era obtido. No fim deste tempo os dois criados apareceram novamente, levaram a mesa e fecharam cuidadosamente a porta atrás de si.
— Estou mesmo sem saber o que pensar, disse Bill Scanlan. Será um sonho ou não? O senhor que nos trouxe até aqui, doutor, diga-me o que é que acha disto tudo.
O Doutor Maracot abanou a cabeça.
— Também a mim me parece um sonho, mas é um sonho maravilhoso! Se pudéssemos fazer chegar nossa história ao conhecimento do mundo!
— Uma coisa, disse eu, parece-me certa: era verdadeira a lenda dos Atlantes e uma parte deste povo conseguiu sobreviver até hoje.
— Mesmo se for isso, disse Bill Scanlan cocando a cabeça, macacos me mordam se posso compreender como é que eles conseguem ar, água fresca e tudo o mais. Talvez aquele engraçado pato de barba que vimos na noite passada nos possa dar depois algumas explicações.
— Como o poderia fazer se não temos uma linguagem comum?
— Utilizemos nossa própria observação, nesse caso, disse Maracot. Uma coisa pelo menos já posso compreender. É que o mel que comemos no almoço é mel sintético, como já aprendemos a fazer sobre a terra. Mas se o mel é sintético, por que não o seriam também o café e o trigo? As moléculas dos elementos são como tijolos que se acham ao nosso redor. Temos apenas de aprender como deslocar determinados tijolos — às vezes mesmo um único tijolo — a fim de fabricar substâncias novas. Por um simples deslocamento desses tijolos o açúcar torna-se amido, ou então álcool.
O que é que produz estes deslocamentos? O calor. A eletricidade. Talvez outras causas que ainda desconhecemos. Algumas substâncias transformam-se espontaneamente, como o rádio tornando-se em chumbo ou o urânio tornando-se rádio, sem que toquemos nelas.
— Supõe então que possuam uma química muito adiantada?
— Estou certo disso. Também não existem tijolos elementares que não estejam ao alcance de suas mãos. Hidrogênio podem obtê-lo da água do mar. Azoto e carbônio, dos vegetais marinhos e fósforo e cálcio devem existir em abundância no depósito batíbico do fundo do oceano. Com processos adequados e os conhecimentos necessários, o que não poderiam eles produzir?
O doutor começara uma dissertação sobre a química quando Manda entrou, saudando-nos amistosamente. Vinha com ele o mesmo velho de aparência venerável que havíamos visto na noite anterior. Ele deveria ter reputação de erudito, pois dirigiu-nos a palavra em várias línguas diferentes, mas que nos eram todas igualmente ininteligíveis. Encolheu os ombros então e falou com Manda, que deu uma ordem aos dois criados que ainda esperavam na porta. Imediatamente estes desapareceram, voltando dali a pouco com uma curiosa tela suportada por dois postes laterais. Tinha grande semelhança com nossas telas de cinema, mas era recoberta de um material brilhante que cintilava à luz. Colocaram-na de encontro a uma das paredes. O ancião afastou-se dela um número certo de passos e marcou o lugar no chão. Daí ele se voltou para Maracot e tocou sua testa, apontando para a tela.
Maracot abanou a cabeça para mostrar nossa perplexidade. Pareceu por um momento que o ancião ficara no mesmo estado. Mas subitamente pareceu ter uma idéia. Apontou para a sua própria pessoa, e voltando-se em seguida para a tela fixou nela os olhos parecendo concentrar a atenção. Quase imediatamente surgiu na tela, à nossa frente, a figura dele próprio. Apontou em seguida para nós e dali a um momento surgia a imagem do nosso pequeno grupo em lugar da sua. Não se parecia muito conosco, é verdade. Scanlan tinha a aparência de um cômico chinês e Maracot a de um cadáver, mas via-se claramente que deveríamos ser nós mesmos, tais como aparecíamos aos olhos do operador.
— É uma projeção do pensamento! exclamei.
— Exatamente, concordou Maracot. É sem dúvida uma invenção das mais maravilhosas e afinal não passa de uma engenhosa combinação de telepatia e televisão, que apenas agora começamos vagamente a compreender sobre a terra.
— Nunca pensei que me veria como artista de cinema, se é que aquele chinês de cara de queijo representa mesmo a minha pessoa, disse Scanlan. Se pudéssemos levar estas notícias para o editor do «Ledger» poderíamos ganhar com que viver folgadamente o resto da vida. Seria um negocião se fosse possível.
— Nisso é que está a dificuldade, observei. Por São Jorge, viraríamos o mundo de pernas para o ar se conseguíssemos voltar. Mas que é que eles querem dizer com esses gestos?
— Aquele velho quer ver sua habilidade para a coisa, doutor.
Maracot tomou o lugar indicado e projetou suas imagens com perfeição. Vimos uma imagem de Manda e em seguida uma outra do «Stratford», tal como o havíamos deixado.
Tanto Manda como o velho sábio exprimiram por sinais a sua aprovação à vista do navio e Manda fez com as mãos um largo gesto, apontando primeiro para nós e em seguida para a tela.
— Querem que lhes conte tudo a respeito de nossas aventuras, exclamei. Querem saber por meio de imagens quem somos nós e como viemos até aqui.
Maracot curvou-se para Manda para mostrar que compreendia, e começara a projetar uma imagem de nossa viagem, quando Manda levantou a mão e o interrompeu. A uma ordem sua os criados removeram a tela e os dois atlantes acenaram-nos para que os seguíssemos.
Era um prédio imenso e atravessamos corredor após corredor até chegarmos finalmente a um enorme salão. A um lado havia uma grande tela da mesma natureza que aquela que havíamos visto. Em frente da mesma achava-se reunido um auditório no mínimo de mil pessoas, que nos receberam com um sussurro de boas-vindas. Era composto de pessoas dos dois sexos e de todas as idades. Os homens, trigueiros e de barba longa; as mulheres, belas na juventude e de aspecto venerável em idade mais avançada. Tivemos pouco tempo para observá-los, pois conduziram-nos logo para os lugares reservados para nós na fileira da frente e Maracot foi então colocado em frente da tela; por uma manobra qualquer a claridade das luzes diminuiu de intensidade e ele recebeu um sinal para começar.
E representou magnificamente o seu papel. A princípio vimos nosso navio saindo do Tâmisa e um sussurro de admiração perpassou pelo auditório àquele autêntico espetáculo de uma cidade moderna. Em seguida surgiu um mapa indicando o seu percurso. Apareceu depois a caixa de aço com seus aparelhos, que foi saudada com um murmúrio de reconhecimento. Vimo-nos a nós mesmos novamente descendo e atingindo as bordas do abismo. Em seguida mostrou o aparecimento do monstro que nos atacara. «Marax», «Marax!» exclamou o povo ao vê-lo. Era evidente que eles já haviam aprendido a conhecê-lo e temê-lo. Houve um silêncio de emoção quando o monstro empolgou nosso cabo'e um sussurro de horror quando os fios se partiram e caímos na voragem. Num mês de explicações não poderíamos ter dado uma idéia tão clara de nossa aventura como naquela meia hora de demonstração visual.
Ao se dissolver o auditório eles procuraram demonstrar-nos sua simpatia, aglomerando-se ao redor de nós e batendo amistosamente em nossas costas para mostrar que éramos bem-vindos. Fomos apresentados a vários chefes sucessivamente, mas a única coisa que os diferençava dos demais deveria ser a sabedoria, pois todos pareciam pertencer à mesma categoria social e estavam vestidos aproximadamente do mesmo modo. Os homens usavam túnicas cor de açafrão que lhes desciam até os joelhos, cintos e altas botas de um material escamoso e resistente, que deveria ter antes servido de proteção a algum animal marinho. As mulheres estavam graciosamente trajadas no estilo clássico; suas vestes flutuantes, de todas as tonalidades do róseo, azul e verde, eram enfeitadas com fileiras de pérolas ou lâminas opalescentes de conchas. Muitas delas eram de uma beleza incomparável. Uma principalmente… Mas para que envolver nesta narrativa os meus sentimentos particulares? Apenas direi que Mona é filha única de Manda, o chefe supremo daquele povo, e que desde aquele primeiro encontro eu li nos seus olhos escuros uma mensagem de compreensão e simpatia que me veio direita ao coração, assim como o meu reconhecimento e admiração podem ter ido ao dela. Não preciso por enquanto dizer mais nada a seu respeito. Basta saber-se que desse momento em diante uma influência nova e poderosa penetrou em minha vida. Quando vi Maracot a gesticular com desusada animação para uma senhora de aspecto bondoso e Scanlan a exprimir por gestos sua admiração no centro de um grupo risonho de moças, vi que meus companheiros também haviam começado a ver nossa situação por uma face menos trágica. Se estávamos mortos para o mundo, pelo menos havíamos encontrado uma outra vida que nos prometia alguma compensação pela que havíamos perdido.
Mais tarde, naquele mesmo dia, fomos guiados por Manda e outros amigos por algumas seções do imenso edifício. Os depósitos acumulados pelo tempo o haviam enterrado tanto no leito do oceano que só era acessível pelo teto, e deste ponto descia-se através de corredores e mais corredores até atingir-se o nível do primeiro pavimento, várias centenas de pés abaixo da câmara de ingresso. O chão deste por sua vez fora escavado e viam-se em todas as direções corredores que se aprofundavam pelas entranhas da terra. Mostraram-nos os aparelhos de fabricação de ar, com as bombas que o faziam circular através do edifício. Maracot fez-nos observar cheio de espanto que não era só o oxigênio e o azoto que eles fabricavam, mas que retortas menores produziam outros gases que só podiam ser o argônio, neônio e outros elementos pouco conhecidos da atmosfera que só agora estamos começando a compreender. As caldeiras destiladoras para a fabricação de água fresca e as poderosas instalações elétricas constituíam outros curiosos objetos de interesse, mas grande parte dos mecanismos era tão complicada que era difícil para nós acompanhar em detalhe o seu funcionamento. Apenas posso dizer que vi com meus próprios olhos e provei com minha boca substâncias diversas em estado gasoso ou líquido que eram conduzidas a aparelhos especiais, aí submetidas à ação de calor, pressão e eletricidade, obtendo-se como produto farinha de trigo, chá, café ou vinho.
Uma consideração se impunha desde logo a nosso espírito ao examinarmos tudo aquilo. Era que aquela submersão fora prevista muito antes que a terra fosse tragada pelo oceano. Era desde logo evidente e não necessitava provas o fato de que estas precauções não poderiam ter sido tomadas depois do fato consumado, mas ficamos mesmo convictos de que todo aquele vasto edifício fora desde o princípio construído com o único objetivo de constituir uma arca de refúgio. As enormes retortas e caldeiras em que o ar, alimentos, água destilada e outros produtos necessários eram obtidos, eram todas embutidas nas paredes e constituíam evidentemente parte integrante da construção original. O mesmo sucedia com as câmaras de saída, as seções de trabalhos em sílica onde fabricavam as bolas de vidrina e as gigantescas bombas que regulavam a entrada e saída da água. Cada uma destas coisas havia sido cuidadosamente preparada pela sabedoria e previsão daquele extraordinário povo, que parecia haver estendido um poderoso braço até a América Central e outro até o Egito, de modo a deixar sinais seus sobre a terra até muito tempo depois de sua pátria se submergir no Atlântico. Quanto a estes seus descendentes, julgamos que provavelmente teriam degenerado, o que aliás seria muito natural, e que se haviam limitado apenas a conservar parte da ciência de seus antepassados, sem ter a energia de acrescê-la. Eles possuíam forças poderosas ao seu dispor, mas pareciam estranhamente faltos de iniciativa, nada havendo adicionado ao maravilhoso legado que haviam recebido. Estou certo de que se Maracot utilizasse estes conhecimentos obteria logo resultados dos mais admiráveis. Quanto a Scanlan, seu espírito vivo logo arranjou meios de distrair nossos hóspedes com habilidades que decerto lhes pareciam tão surpreendentes como sua ciência para nós. Ele tinha no bolso uma gaita quando fizemos nossa descida e tocava-a sempre agora, para perpétua alegria de nossos hóspedes, que escutavam arrebatados, como o faríamos com um Mozart, as canções populares de sua terra natal.
Já disse antes que nem todo o edifício estava aberto à nossa inspeção e devo acrescentar mais alguns detalhes sobre este assunto. Havia um corredor descendente pelo qual víamos continuamente gente passando e que era sempre evitado pelos guias em nossas excursões. Como era natural, nossa curiosidade foi aguçada por essa circunstância e resolvemos uma tarde tomar o risco de fazer algumas explorações por nossa própria conta. Em conformidade com isto, numa hora em que havia pouco movimento deslizamos para fora de nosso quarto e tomamos o caminho da região desconhecida.
Aquele corredor nos conduziu a uma alta porta em forma de arco, que parecia ser feita de ouro maciço. Empurrando-a encontramo-nos em um vasto salão, formando um quadrado de duzentos pés de lado, no mínimo. As paredes que o limitavam eram pintadas de cores vivas e ornadas com estranhas pinturas e estátuas de entes grotescos, com enormes toucados semelhantes aos dos trajes de cerimônia dos nossos índios americanos. No outro extremo deste grande salão via-se uma enorme figura sentada, com as pernas cruzadas como um Buda, mas sem nada daquela aparência benévola que se vê nas suas plácidas feições. Muito pelo contrário, esta era uma divindade feroz, de boca semi-aberta e olhos rubros e cruéis, cujo aspecto terrível era ainda mais exagerado pelo efeito de lâmpadas elétricas colocadas atrás dos mesmos. Em seu regaço achava-se um grande forno, que, aproximando-nos, vimos estar cheio de cinzas.
— Moloc! disse Maracot. Moloc ou Baal — o velho deus das raças fenícias.
— Céus! exclamei, cheio de horror com a lembrança da velha Cartago diante dos olhos. Será que um povo tão acolhedor como este sacrifica vítimas humanas?
— Pelo menos espero que eles o façam em família, Bo, disse Scanlan alarmado. Não há nenhuma vantagem em que estendam esse uso a nós.
— Creio que já se terão corrigido, observei. É o infortúnio próprio que nos ensina a ter piedade dos outros.
— Deve ser isso, disse Maracot, remexendo nas cinzas. O deus continua a ser o mesmo, mas seguramente o culto se terá tornado menos cruel. Isto deve ser folhas queimadas ou coisa que o valha. Mas houve talvez uma época…
Nossas especulações, porém, foram interrompidas por uma voz ríspida ao nosso lado, e, voltando-nos, vimos ao nosso redor vários homens vestidos de amarelo e com chapéus altos, que deveriam ser os sacerdotes do templo. Pela expressão de seus rostos vi que estávamos muito perto de ser as últimas vítimas de Baal. Um deles chegou mesmo a sacar uma faca da cintura, e com gritos e gestos ferozes nos expulsaram rudemente de seu relicário sagrado.
— Com mil diabos! exclamou Scanlan. Se este sujeito continua a berrar desse modo eu dou uns murros nele! Largue o meu paletó, seu cara de coruja!
Por alguns momentos supus que iríamos ter o que Scanlan chamava um «tempo quente», dentro do recinto sagrado. Conseguimos, contudo, arrastar sem incidentes o colérico mecânico para o abrigo de nosso quarto, mas pela atitude de Manda e outros dos nossos amigos vimos que nossa excursão fora sabida e deplorada.
Havia porém outro santuário que nos foi mostrado espontaneamente, tendo tido esta visita um resultado dos mais inesperados para nós, pois proporcionou-nos um meio de comunicação com nossos amigos, embora imperfeito e ainda difícil. Era um salão que havia abaixo do templo, sem decorações nem ornamentos a não ser, numa extremidade, uma estátua de marfim amarelecida pelo tempo, representando uma mulher segurando uma espada e com uma coruja trepada no ombro. O guarda do santuário era um venerável velho, mas, apesar de sua idade, vimos logo que pertencia a uma raça muito diferente da dos sacerdotes do templo. Enquanto eu e Maracot admirávamos a estátua de marfim, meditando intrigados onde havíamos visto uma figura semelhante, o ancião nos dirigiu a palavra.
— Tea, disse ele apontando para a estátua.
— Por São Jorge! exclamei, ele está falando em grego!
— Tea! Atena! repetiu o ancião.
Não havia dúvida possível. «Deusa — Atena»: as palavras confundíveis. Maracot, cujo cérebro formidável havia absorvido um pouco de todos os conhecimentos humanos começou imediatamente a fazer perguntas em grego que eram apenas parcialmente compreendidas e respondidas num dialeto tão arcaico que era quase incompreensível. Mesmo assim obteve várias informações, e conseguimos desse modo um intermediário por meio do qual poderíamos com alguma dificuldade comunicar-nos com nossos novos amigos.
— Esta é uma prova notável, disse-nos Maracot, do fundo da verdade que geralmente existe nas lendas. Há sempre uma base de fatos, mesmo se com o decorrer dos anos surgem adulterações. Devem saber — ou provavelmente não saberão — («Não se fie muito!», havia gritado Scanlan) — que havia uma guerra entre os primitivos gregos e os atlantes da época da destruição desta grande ilha. Este fato está registrado na descrição feita por Sólon do que ficou sabendo por intermédio dos sacerdotes de Sais. Podemos conjeturar que havia prisioneiros gregos nas mãos dos atlantes neta época e que alguns deles haviam pertencido ao serviço do seu Templo, tendo levado sua religião consigo. Aquele homem é, ao que parece, o velho sacerdote hereditário do seu culto e talvez mais tarde possamos por seu intermédio aprender alguma coisa mais sobre este antigo povo.
— Pelo menos parecem gente de bom gosto, disse Scanlan. Acho que se se quer um deus de massa é muito melhor escolher-se uma bonita mulher do que aquela figura de olhos rubros e fogão nos joelhos.
— Felizmente eles não compreendem o que está dizendo, observei. Senão, você poderia muito bem acabar como um mártir do cristianismo.
— Enquanto eu os divertir com as minhas músicas estou garantido, replicou ele. Eles já se acostumaram comigo e por isso sentirão falta de mim.
Levávamos uma vida feliz no meio daquele povo alegre e acolhedor, contudo havia e há ocasiões em que nosso coração se volta saudoso para a terra que perdemos. Vem-me então ao espírito a lembrança dos velhos quarteirões de Oxford ou dos idosos olmos e gramados verdes de Harvard. Até há pouco eles me pareciam tão distantes como uma paisagem lunar, e só agora começa a se me insinuar vagamente no espírito a esperança de vê-los novamente.
Poucos dias depois de nossa chegada, nossos hóspedes ou nossos captores — ficávamos algumas vezes em dúvida de como chamá-los — levaram-nos para uma expedição sobre o fundo do oceano. Seis deles vieram conosco, inclusive Manda, o chefe. Reunimo-nos na mesma sala em que havíamos entrado da primeira vez, e estávamos agora em condições de examiná-la mais detidamente. Era um compartimento bem vasto, no mínimo de cem pés de lado e suas paredes baixas e seu teto eram úmidos e de cor esverdeada devido às vegetações marinhas que os cobriam. Uma longa fileira de ganchos, com marcas que presumo fossem números, estendia-se ao redor de toda a sala, e em cada um deles estava suspensa uma daquelas campanas semitransparentes de vidrina e um par daqueles pequenos aparelhos que, colocados nos ombros, asseguravam a respiração. O assoalho era coberto por lajes de pedra que os passos de numerosas gerações haviam escavado em muitos pontos, o que fazia com que aí se formassem poças rasas de água. Tudo era profusamente iluminado por tubos fluorescentes que se viam ao redor das cornijas. Vestiram-nos os invólucros de vidrina e um forte bastão pontudo, feito de algum metal leve, foi entregue a cada um de nós. Em seguida Manda nos ordenou por sinais que nos segurássemos a uma grade metálica que havia ao redor da sala, dando-nos o exemplo ele e seus companheiros. O fim disto logo se nos esclareceu, pois, quando se abriu a porta exterior, a água penetrou com tal força que seríamos atirados ao chão se não fosse este cuidado. Elevou-se rapidamente até acima das nossas cabeças, e seu impulso diminuiu. Manda tomou então o caminho da porta e nós o acompanhamos, e dali a um momento achávamo-nos novamente no leito do oceano, deixando a porta aberta atrás de nós para quando voltássemos.
Olhando ao nosso redor na luz frígida e espectral que iluminava a planície batíbica, podíamos ver pelo menos um quarto de milha em cada direção. O que mais nos surpreendeu foi observar no extremo limite de visibilidade, em dada direção, um clarão estranho. Foi nessa direção que o chefe se encaminhou, seguindo nosso pequeno grupo em fila atrás dele. Caminhávamos lentamente, pois, além de termos a vencer a resistência da água, nossos pés se enterravam profundamente no lodo a cada passada; mas logo vimos o que era aquela claridade que nos atraíra. Era nossa caixa de aço — a última recordação que tínhamos da vida terrestre — que continuava inclinada sobre uma das cúpulas do extenso edifício, com todas as suas luzes ainda acesas. Estava cheia de água até três quartos de sua altura, mas o ar aprisionado ainda preservava a parte em que se achava nossa instalação elétrica. Era realmente curioso, para nós, olhando o seu interior, vermos aquele ambiente familiar, com nossos bancos e instrumentos ainda na posição em que os deixáramos, povoados de peixes de vários tamanhos a nadar de um para outro lado no seu interior. Passando um após outro, nós três entramos pelo alçapão aberto. Maracot para salvar uma caderneta de notas que flutuava na superfície e Scanlan e eu para pegarmos alguns objetos que nos pertenciam. Manda entrou também conosco, com um ou dois de seus companheiros, examinando com o maior interesse o batímetro e o termômetro, assim como os outros instrumentos suspensos em suas paredes. Quanto ao termômetro, pode ser que interesse aos cientistas saber que é de quarenta graus Fahrenheit a temperatura da maior depressão marinha a que o homem já desceu, e que é mais elevada que a das camadas superiores do mar devido à decomposição química dos seus depósitos orgânicos.
Ao que parecia, nossa pequena expedição tinha um objetivo predeterminado, não se tratando apenas de um simples passeio pelo leito do oceano. Estávamos à caça de alimento. De vez em quando um de nossos companheiros lançava um golpe rápido com seu bastão pontudo, espetando de cada vez um grande peixe chato e escuro, pouco diferente de um rodovalho, que apesar de abundante se confundia tanto com o lodo que eram necessários olhos exercitados para conseguir distingui-lo. No fim de pouco tempo cada um dos nossos homens trazia já dois ou três dos mesmos suspensos ao lado. Eu e Scanlan logo aprendemos a técnica desta nova espécie de pescaria, conseguindo um par dos mesmos para cada um, mas Maracot caminhava como num sonho, perdido na admiração das belezas marinhas que o cercavam, e fazia longas e entusiastas dissertações que eram perdidas para o ouvido mas perceptíveis aos olhos pelas contorções de seu rosto.
Nossa primeira impressão fora de monotonia, mas logo verificamos que aquelas planícies acinzentadas apresentavam variadas formações devidas à ação de correntes marinhas profundas que derivavam aí como rios submarinos. Estas correntes cortavam canais na fraca consistência do lodo do fundo e expunham assim as formações que havia abaixo, que consistiam na argila vermelha do leito do oceano. Esta argila estava coberta de objetos brancos que supus serem conchas, mas que examinando mais de perto vimos serem constituídos por barbatanas de baleias e dentes de tubarões e outros monstros marinhos. Um destes dentes que peguei tinha quinze polegadas de comprimento, e era realmente uma grande felicidade que um monstro tão terrível freqüentasse camadas mais elevadas do oceano. Devia pertencer, segundo Maracot, a um gigantesco exemplar do gênero Grampus, ou a um Orca gladiador. Isto fazia lembrar a observação de Mitchell Hedges de que mesmo no corpo dos mais terríveis tubarões que pescara havia observado sinais que mostravam haverem eles encontrado animais maiores e mais fortes que eles próprios.
Há uma peculiaridade das profundezas do oceano que chama a atenção do observador. Como já disse, existe aí uma perene luz frígida que se desprende do solo, devida à fosforescência resultante da decomposição de grandes massas de matéria orgânica. Mas acima tudo é negro como a noite. Tudo isto contribui para relembrar o aspecto de um dia sombrio de inverno sobre a terra, com uma nuvem pesada e negra de tempestade, suspensa ameaçadoramente. Deste palio negro cai lentamente uma chuva incessante de pequenos e brancos flocos luminescentes, realçando contra o fundo obscuro. São os restos de caracóis do mar e outros pequenos seres que vivem e morrem nas cinco milhas de água que nos separam da superfície, e se bem que boa parte dos mesmos se dissolva na queda, a parte restante vai no decurso dos séculos formar aquele depósito que enterrou a grande cidade cuja parte superior habitávamos agora.
Deixando para trás aquela última coisa que nos lembrava a terra, penetramos na obscuridade do mundo submarino, deparando logo com um espetáculo completamente inesperado. Apareceu à nossa frente uma confusa massa movediça que, ao nos aproximarmos, vimos ser formada por uma multidão de homens, cada um com seu invólucro de vidrina, que arrastava grandes trenós cheios de carvão. Era um trabalho pesado e os pobres diabos curvavam-se para a frente puxando com todas as forças as cordas de pele de tubarão que serviam de tirantes. Com cada grupo de homens ia um que parecia chefiá-los, e o que mais nos chamou a atenção foi ver que os chefes e os operários pertenciam a raças visivelmente diversas. Os últimos eram homens altos, vistosos, de olhos azuis e corpos vigorosos. Os outros, como já descrevi, eram de tez escura, quase negra, atarracados de corpo. Não podíamos naquele momento penetrar o mistério, mas pareceu-me que uma raça deveria ser escrava hereditária da outra, e Maracot era mesmo de opinião que aqueles bem poderiam ser os descendentes dos prisioneiros gregos cuja deusa havíamos visto no templo.
Encontramos em nosso caminho antes de chegarmos à mina vários magotes destes homens, cada um com carregamento de carvão. Neste ponto os depósitos orgânicos e as formações arenosas que havia logo abaixo haviam sido removidos, deixando aberta uma imensa cova em que se viam estratos alternados de argila e carvão, representando camadas sucessivas do solo daquele antigo continente que desaparecera nas águas do Atlântico. Em vários níveis desta imensa escavação podíamos ver grupos de homens a talhar o carvão, enquanto outros o reuniam em montes e colocavam em cestos que eram içados em seguida. A mina era tão funda que nem podíamos ver a outra extremidade daquele enorme poço, que certamente havia sido escavado aos poucos por numerosas gerações de operários. Era este carvão que, transformado em força elétrica, ia produzir a energia que movimentava todos os maquinismos dos atlantes. É interessante, contudo, assinalar que o nome da velha nação fora conservado corretamente nas lendas, pois quando o mencionamos a Manda e a outros, eles primeiro mostraram-se grandemente surpreendidos pelo fato de o conhecermos, sacudindo em seguida vigorosamente a cabeça para mostrar que compreendiam.
Contornando a abertura da mina pela direita chegamos a um aglomerado de rochedos pouco elevados de basalto, de superfície tão clara e luzidia, como quando se haviam projetado das entranhas da terra, cujos ápices, que se elevavam algumas centenas de metros acima de nossas cabeças, tinham um brilho sombrio contra aquele fundo de trevas. A base destas rochas de origem vulcânica estava afogada num denso matagal de altas plantas marinhas, que se elevavam dentre massas intricadas de corais crinóides. Caminhamos por algum tempo ao redor desta densa massa de vegetação, que nossos companheiros açoitavam com seus bastões, fazendo sair para nosso divertimento uma extraordinária variedade de estranhos peixes e crustáceos e apanhando de vez em quando um ou outro exemplar para suas mesas. Vagueamos deste modo despreocupado por uma milha ou duas, mas repentinamente vi Manda parar e olhar ao seu redor com gestos de alarma e surpresa. Estes gestos deveriam formar uma linguagem, pois num momento seus companheiros compreenderam a causa de sua agitação; nós também, assustados, demos com a razão de todo aquele alvoroço. O Dr. Maracot desaparecera.
Não tínhamos dúvidas de que estivera conosco na mina de carvão e nos acompanhara até os rochedos de basalto. Não era concebível que se houvesse adiantado de nós, por isso deveria ter ficado em algum lugar para trás. Apesar da inquietação de nossos amigos, Scanlan e eu, que conhecíamos a distração do bom homem, confiávamos em que não haveria causa para alarma e que logo o encontraríamos a examinar absorto qualquer ser marinho que lhe teria atraído a atenção. Todos nós voltamos sobre nossos passos, mas mal havíamos caminhado uma centena de jardas quando o avistamos.
Ele vinha correndo — correndo com uma agilidade que julgaria impossível a um homem de seus hábitos. Mesmo a pessoa menos atlética deste mundo sabe correr quando movida pelo medo. Suas mãos estavam estendidas a pedir socorro e precipitava-se cegamente para a frente, aos tropeções, com grotesca energia. Tinha aliás boas razões para isso, pois três animais horripilantes o seguiam de perto. Eram caranguejos-tigres listrados de preto e branco do tamanho de um cão terra-nova. Felizmente eles não eram também muito bons corredores e adiantavam-se pelo fofo leito do oceano numa curiosa corrida de lado que era pouco mais rápida que a do atemorizado fugitivo.
Sua resistência, porém, devia ser melhor e provavelmente teriam em poucos minutos caído sobre ele com suas temíveis tenazes se nossos amigos não houvessem intervindo. Eles se precipitaram ao seu encontro com seus varões pontudos e Manda lançou a luz de uma poderosa lanterna elétrica que trazia no cinto sobre os olhos dos repulsivos monstros, que se internaram no matagal, perdendo-se de vista. Nosso companheiro deixou-se cair sobre uma elevação coralina e via-se pelo seu rosto que aquela aventura o deixara exausto. Contou-nos depois que havia penetrado naquela jângal marinha na esperança de apanhar o que lhe parecera ser um exemplar raro das grandes profundidades de um peixe do gênero Chimoera, mas fora dar exatamente na toca daqueles ferozes caranguejos-tigres, que imediatamente se haviam precipitado ao seu encalço. Só depois de um longo descanso é que pôde continuar a caminhada.
Logo depois de contornarmos as rochas de basalto é que vimos qual era nosso verdadeiro objetivo. A planície acinzentada que se estendia ante nós estava neste ponto recoberta de saliências irregulares e altas colunas, que nos mostravam que a grande cidade de outrora se achava à nossa frente. Teria sido enterrada para sempre pelos depósitos oceânicos como Herculanum o foi pelas lavas ou Pompéia pelas cinzas, se uma entrada para' ela não houvesse sido escavada pelos sobreviventes do templo. Esta entrada era um longo declive que terminava em uma larga rua com edifícios descobertos de cada lado. Aqui e além viam-se as paredes dos mesmos fendidas ou em ruínas, pois não eram tão sòlidamente construídos como o templo, mas as decorações interiores achavam-se na maioria dos casos no mesmo estado que quando a catástrofe ocorrera, excetuando-se as inovações de toda sorte, algumas vezes belas e outras horripilantes, trazidas pelo mar. Nossos guias não nos encorajaram a examinar as primeiras que encontramos, caminhando apressadamente até chegarmos a um prédio que deveria certamente ter sido o grande palácio ou cidadela central, ao redor da qual toda a cidade se achava edificada. Os pilares, colunas, as enormes cornijas recamadas de esculturas, os frisos e as escadas deste edifício excediam em beleza tudo o que já havia visto sobre a terra. Chegando mais perto pareceram-me semelhantes aos restos do Templo de Karnak, em Luxor, no Egito, e o que é mais estranho é que aquelas decorações e aquelas esculturas em relevo se assemelhavam mesmo em detalhe às da grande ruína das margens do Nilo, o mesmo sucedendo com os capitéis em forma de loto das colunas. Era um espetáculo impressionante estar-se naqueles vastos saguões pavimentados de mármore, com grandes estátuas torrejando a cada lado, e ver-se como vimos naquele dia grandes enguias prateadas serpejando acima de nossas cabeças e outros peixes desfechando em todas as direções, afugentados pelo jacto de luz que lançávamos à nossa frente. Erramos de sala em sala, observando por toda parte os sinais daquele requinte de fausto a que haviam chegado, e, ocasionalmente, daquela doida lascívia que, segundo a lenda, fora o que atraíra a maldição divina sobre a nação. Vimos um pequeno quarto maravilhosamente ornamentado de nácar, que ainda agora luzia com matizes opalescentes à luz de nossas lâmpadas. Uma plataforma lavrada de um metal amarelo e um leito da mesma natureza se achavam a um canto, e sentia-se que ali bem poderia ter sido o quarto de uma rainha, mas ao lado do leito se achava agora uma repugnante lula negra, levantando e deixando cair o corpo num ritmo lento, como se fosse algum coração mau que ainda pulsasse bem no centro daquele palácio maldito. Senti-me satisfeito, e depois soube que o mesmo sucedera aos meus companheiros, quando nossos guias se retiraram conosco, levando-nos por alguns momentos a um anfiteatro arruinado e em seguida a um dique com um farol numa extremidade, o que indicava que aquela cidade fora um porto de mar. Dali a pouco saíamos daqueles lugares de mau agouro e entrávamos novamente na já familiar planície batibiana.
Nossas aventuras, porém, ainda não se haviam encerrado, pois iríamos encontrar mais uma que causou tanto alarma a nossos companheiros como a nós mesmos. Já estávamos perto de nossa morada quando um dos guias apontou para cima em sinal de alarma. Olhando para essa direção, vimos um espetáculo extraordinário. Da obscuridade das águas que nos cobriam vinha emergindo um vulto enorme e escuro, que se avolumava à proporção que se aproximava em sua queda rápida. A princípio víamo-lo apenas como uma massa indistinta, mas quando a luz o iluminou melhor pudemos ver que era o corpo monstruoso de um animal morto, com o ventre de tal modo rompido que suas entranhas se agitavam acima dele, enquanto caía. Sem dúvida os gases o haviam feito flutuar por algum tempo nas camadas mais altas do oceano, até que, libertado pela putrefação ou pelas devastações dos tubarões se reduzira a um peso morto que o arrastara volteando, para o fundo do oceano. Em nosso trajeto já havíamos observado vários grandes esqueletos de animais marinhos que os peixes haviam devorado até aos ossos, mas o corpo do que agora víamos, embora tivesse as entranhas de fora, conservava ainda a mesma aparência que tinha quando vivo. Nossos guias seguraram-nos com a intenção de nos arrastar para fora do seu caminho, mas vendo que ele não nos atingiria permaneceram no mesmo lugar. Nossos elmos de vidrina nos impediram de ouvir o estrondo daquele corpo enorme batendo no leito do oceano, mas este deveria ter sido ensurdecedor, a se julgar pela altura a que se elevou o limo do fundo. Era uma baleia de uns setenta pés de comprimento e pelos gestos alegres daquele povo submarino depreendi que para eles deveria ter grande utilidade o espermacete e a gordura da mesma. Deixaram-na contudo provisoriamente e dali a pouco nos achávamos de coração alegre em frente da porta esculpida do teto, pois, como não estávamos acostumados a tal exercício, sentíamo-nos cansados e com os membros doloridos. Finalmente, sãos e salvos, retiramos nossos invólucros de vidrina, sobre o chão lamacento da câmara de ingresso.
Alguns dias depois — contando o tempo pelo relógio — de termos feito a descrição cinematográfica de nossas aventuras, presenciamos uma exibição muito mais solene e augusta da mesma natureza, que nos mostrou de um modo claro e admirável a história passada deste notável povo. Não posso jactar-me de que tenha sido projetada exclusivamente em nossa honra, pois creio antes que tais acontecimentos eram rememorados publicamente de tempos a tempos a fim de transmitir a tradição, e que a parte à qual fomos admitidos era apenas um intervalo numa longa cerimônia religiosa. Seja o que for, porém, descrevê-la-ei o mais exatamente possível.
Fomos conduzidos ao mesmo grande salão ou teatro onde o Dr. Maracot havia projetado nossas aventuras sobre a tela. Estava lá reunida toda a comunidade e haviam-nos reservado, como antes, lugares de honra em frente da grande tela luminosa. Em seguida, após um longo canto que bem poderia ter sido uma espécie de hino patriótico, um ancião de cabelos alvos, que deveria ser o historiador ou cronista da nação, adiantou-se entre muitos aplausos e projetou sobre a superfície polida da tela uma série de aspectos para representar a ascensão e o declínio da sua gente. Desejaria poder reproduzir aqui esse espetáculo em todo o seu vigor e dramaticidade. Meus dois companheiros e eu perdemos toda noção do tempo e do lugar em que estávamos, arrebatados pelas cenas que se apresentavam ante nossos olhos, enquanto o auditório, movido no mais íntimo de sua alma, suspirava ou chorava à proporção que se desenrolava a tragédia que descrevia a ruína de sua pátria e a destruição do seu povo.
Nas primeiras cenas vimos o velho continente no apogeu de sua glória, como sua lembrança fora transmitida de pais e filhos. Tivemos uma visão rápida de campinas férteis, imensas em extensão, cortadas de cursos de água e sabiamente irrigadas, com grandes plantações de gramíneas, pomares ondulantes, rios pitorescos, colinas cobertas de matas, lagos e montanhas. Era salpicada de aldeias e coberta de herdades e belos edifícios residenciais. Em seguida surgiu a capital, uma cidade de extraordinária beleza, à beira-mar, de porto coalhado de galeras e cais atulhado de mercadorias, protegida por altas muralhas, torres e fossos circulares, tudo de proporções gigantescas. As casas se estendiam terra a dentro por muitas milhas e no centro da cidade havia um castelo ou cidadela ameada tão desmesurada e portentosa que parecia a criação de um sonho. Mostraram-se-nos em seguida imagens daqueles que viviam nessa idade de ouro, anciãos sábios e veneráveis, nobres guerreiros, sacerdotes virtuosos, mulheres belas e respeitáveis, crianças encantadoras — uma apoteose da espécie humana.
Vieram em seguida cenas de outra sorte. Vimos guerras, guerras contínuas por terra e por mar. Vimos povos inofensivos e nus espezinhados e esmagados por grandes carros de batalha ou pela investida de cavaleiros cobertos de armaduras. Vimos os tesouros acumulados pelos vencedores, mas à proporção que as riquezas aumentavam, as fisionomias que apareciam na tela tornavam-se progressivamente mais bestiais e cruéis. Víamo-las torvar-se cada vez mais de uma geração para outra. Mostraram-se-nos sinais de dissolução de costumes e degeneração moral, de predomínio da matéria e declínio do espírito. Esportes brutais à custa de outrem haviam tomado o lugar dos salutares exercícios de outrora. Não havia mais a simples e tranqüila vida de família nem o cultivo do espírito, mas tínhamos o espetáculo de um povo volúvel, precipitando-se irrequieto em busca do prazer e deixando sempre de encontrá-lo e a imaginar, todavia, ser possível encontrá-lo de algum modo mais complexo ou menos natural. Por um lado, havia-se erguido uma classe arqui-rica que unicamente buscava o deleite sensual e, por outro, havia-se criado uma escória humana menos que pobre, cuja única função na vida era atender às necessidades de seus amos, por malignas que fossem tais necessidades.
Mas, de repente, passou-se a um novo assunto. Havia reformadores em ação, a procurar desviar a nação dos maus rumos e a fazê-la retornar às sendas mais elevadas que abandonara. Vimo-los, esses graves e austeros homens, a argumentar e a defender suas idéias em meio do povo, mas desprezados e escarnecidos por aqueles mesmos a quem tentavam salvar. Vimos, principalmente, hostilizar a esses reformadores os sacerdotes de Baal, os quais gradualmente permitiram que os rituais e pompas externas se substituíssem ao altruístico desenvolvimento espiritual. Mas aqueles não eram de tempera a se atemorizar com ameaças nem temer humilhações. Continuavam a pugnar pela salvação do povo, e assumiam seus rostos um aspecto mais grave e, mesmo, mais aterrador, como os de homens que tivessem terríveis coisas a comunicar, que se apresentavam mesmo aos seus próprios espíritos como temerosas visões. Alguns de seus ouvintes pareciam prestar atenção e mostrar-se apavorados com suas palavras, mas outros voltavam-lhes, rindo, as costas, mergulhando-se, cada vez mais, em seu pântano de pecados. Veio, por fim, um tempo em que os reformadores se retraíram, também, como homens que nada mais podiam fazer, deixando esse povo degenerado entregue a seu destino.
Vimos então uma estranha cena. Surgiu um reformador, homem de singular vigor de espírito e de corpo, que sobrepujou a todos os demais. Tinha ele riquezas, influência e poderes que mais tarde pareceram não ser inteiramente deste mundo. Vimo-lo numa espécie de êxtase, comunicando-se com espíritos superiores. Fora ele quem utilizara toda a ciência de seu povo — uma ciência que ultrapassava tudo o que modernamente se conhece — na construção de uma arca de refúgio contra a catástrofe que se aproximava. Vimos miríades de operários ocupados neste trabalho e as paredes lentamente se elevando, enquanto multidões de cidadãos ociosos observavam motejando este excesso inútil de precauções. Vimos outros que pareciam discutir com ele e dizer-lhe que se tivesse quaisquer receios ser-lhe-ia mais fácil fugir para uma terra mais segura. Sua resposta, ao que parecia, foi que havia alguns que deveriam ser salvos no último momento e que por sua causa ele deveria permanecer no novo templo de segurança. Enquanto isso ele reunia ali aqueles que o haviam seguido e aí os conservava, pois ele próprio não sabia o dia nem a hora em que se dariam estes sucessos, se bem que forças sobrenaturais o houvessem assegurado da sua proximidade. Por isso, quando a arca ficou pronta e as portas foram experimentadas com êxito, pôs-se pacientemente à espera do castigo, com sua família, seus amigos, seus discípulos e seus servos. E o castigo veio finalmente. Era um espetáculo amedrontador, mesmo visto numa tela. Só Deus sabe o que poderia ter sido na realidade. Primeiro vimos uma tremenda montanha de água elevar-se a incrível altura acima de um mar tranqüilo. Em seguida vimos aquela colina rebrilhante de espumas progredir milha após milha, numa velocidade cada vez maior. O que nos parecia serem duas pequeninas embarcações oscilando no topo daquela onda gigantesca, vimos ao se aproximar mais serem duas galeras desarvoradas. Vimo-la bater na praia e varrer a cidade, e as casas abaterem-se à sua frente como um campo de trigo diante de um furacão. Vimos o povo sobre os tetos das casas a olhar a morte que se avizinhava, com os rostos contorcidos de terror, os olhos dilatados, as bocas contraídas, mordendo os punhos e lamentando-se num pavor insano. Os mesmos homens e mulheres que haviam zombado dos avisos clamavam agora aos céus por piedade, arrastando os rostos no chão ou ajoelhando-se com os braços estendidos numa súplica desesperada. Não havia tempo para se chegar à arca, que ficava para fora da cidade, mas milhares de pessoas refugiaram-se na cidadela, que ficava num plano mais elevado, e as paredes do imenso edifício ficaram apinhadas de gente. Mas subitamente o castelo começou a afundar. Tudo começou a afundar. A água penetrara nos remotos recessos da terra e o fogo central a transformara em vapores, cuja enorme força de expansão havia abalado os próprios fundamentos do continente. Cada vez mais mergulhava a cidade e um grito de horror escapou-se de nossos peitos e de todo o auditório, à vista do terrível espetáculo. O dique quebrou-se em dois e desapareceu. O alto farol sumiu-se nas ondas. Por algum tempo ainda, viram-se os tetos como séries de recifes, até que finalmente estes também mergulharam. Só ficara a cidadela na superfície, como um navio monstruoso, que finalmente também mergulhou no abismo, obliquamente, com uma cabelugem de mãos agitando-se desesperadamente no ar. O terrível drama se consumara e um lençol ininterrupto de águas cobria agora todo o continente, águas que não traziam um ser vivo em sua superfície e que nos seus gigantescos turbilhões e redemoinhos mostravam ainda destroços da tragédia jogados de um para outro lado; homens e animais mortos, cadeiras, mesas, artigos de vestuário, chapéus flutuando e fardos de mercadorias, tudo agitando-se e turbilhonando em desordem. Lentamente, porém, voltou a tranqüilidade, e apenas uma extensão de água lisa e brilhante como mercúrio vivo, iluminada por um sol pálido e baixo, nos indicava agora o túmulo da nação que Deus condenara.
A história era completa. Não podíamos exigir mais, pois nossos próprios cérebros poderiam imaginar o resto. Concebíamos a descida lenta e progressiva daquela grande cidade nas profundidades abissais do oceano, entre convulsões vulcânicas que elevavam ao seu redor picos submarinos. Vimos com os olhos da imaginação a enorme cidade estendida no fundo do Atlântico ao lado da arca de refúgio, em que um punhado de sobreviventes se reunia pávido. E finalmente compreendemos como decorrera sua vida depois, como haviam aprendido a utilizar os numerosos recursos com que a previsão e sabedoria de seu grande chefe os havia provido; de como este lhes transmitira toda a sua ciência antes de morrer e como de cinqüenta ou sessenta sobreviventes se originara toda uma comunidade, que fora obrigada a escavar as entranhas da terra a fim de conseguir espaço para se expandir. Nenhuma biblioteca informativa nos poderia dar de tudo uma idéia mais clara que aquela série de aspectos e as deduções que deles podíamos inferir. Tais foram a sorte da grande Atlântida e as causas que motivaram sua ruína. Num dia distante em que este lodo já se terá transformado em calcário, esta grande cidade sairá novamente das águas por algum outro movimento sísmico, e o geologista do futuro, escavando o solo, exumará não rochas e conchas, mas sim as ruínas de uma civilização desaparecida e os sinais de uma catástrofe remota.
Só um ponto ficara duvidoso; o tempo que decorrera desde que a tragédia tivera lugar. O Dr. Maracot, porém, descobriu um método grosseiro de se avaliar este tempo. Entre as numerosas dependências do grande edifício havia um grande sepulcro onde se enterravam os chefes. Como no Egito e em Yucatán, também eles tinham o costume de mumificar os mortos, e em nichos nas paredes viam-se inúmeras fileiras dessas relíquias fúnebres do passado. Manda apontou-nos orgulhosamente o primeiro nicho desocupado, dando a entender que havia sido especialmente preparado para a sua pessoa.
— Se se tomarem por base os reinos da Europa, disse Maracot — ver-se-á que em média se sucedem cinco reis por século. Podemos tomar essa circunstância como base para calcular a época da submersão da Atlântida. Não podemos esperar uma exatidão científica do resultado, mas teremos uma aproximação aceitável. Contei as múmias e vi que eram em número de quatrocentas.
— Teria sido então há oito mil anos?
— Exatamente. E isto concorda até certo ponto com a estimativa de Platão. Certamente ocorreu antes das narrações escritas dos egípcios, e estas sobem a seis ou sete mil anos antes da data atual. Sim, creio que poderemos dizer que nossos olhos viram a reprodução de uma tragédia que ocorreu no mínimo há oito mil anos. Além disso, construir uma civilização tal como aquela cujos restos tivemos ocasião de ver, deveria por sua vez ter exigido muitos milhares de anos.
«Assim — concluiu ele, e eu te transmito suas palavras — aprofundamos os horizontes da história humana como nenhum conseguiu fazê-lo desde que a História nasceu.»
Foi cerca de um mês após nossa visita à cidade submersa, conforme nossos cálculos, que nos surpreendeu um sucesso dos mais contristadores e inesperados. Pensávamos por aquela época que estávamos a salvo de tais abalos e que nada mais nos conseguiria sobressaltar, mas este fato ultrapassava tudo o que nossa imaginação poderia esperar.
Foi Scanlan quem trouxe a notícia de que algo sensacional ocorrera. Bem podes imaginar que por este tempo já nos sentíamos até certo ponto à vontade naquele grande edifício. Já sabíamos onde estavam situados os salões de descanso e diversões, assistíamos a concertos (tinham uma música original mas agradável) e espetáculos teatrais, onde a linguagem ininteligível era traduzida pela gesticulação expressiva e dramática. Falando de um modo geral, já nos integráramos na comunidade. Visitávamos várias famílias em seus aposentos particulares e a vida que levávamos — pelo menos na minha opinião — era tornada mais agradável pelo cativante trato daquele estranho povo e especialmente daquela mui cara senhorita a que já me referi. Mona era filha de um dos chefes e encontrei em sua família um acolhimento cordial e amistoso, que anulou todas as diferenças de raça e língua. No que se refere à mais terna das linguagens, não creio que haja muita diferença entre a velha Atlântida e a moderna América. Creio que aquilo que agradaria a uma colegial de Brown's College de Massachusetts é justamente o que agradaria à minha dama de sob as águas.
Mas, como dizia, Scanlan entrou em nosso quarto com notícias de que algo sensacional ocorrera.
— Acaba de chegar um deles tão agitado que se esqueceu completamente de tirar sua roupa de vidro e levou falando vários minutos antes de compreender que ninguém o poderia escutar. Depois foi só tá-tá-tá-, tá-tá-táp, tá-tá-tá, até perder o fôlego e agora todos o estão seguindo para a câmara de saída. Eu é que vou também para a água, pois deve haver alguma coisa lá digna de ser vista.
Precipitando-nos para fora, vimos nossos amigos caminhando apressadamente pelo corredor a gesticular agitada-mente e juntando-nos à procissão fazíamos dali a pouco parte da multidão que se adiantava apressadamente pelo fundo do mar, conduzida pelo agitado mensageiro. Caminhavam com uma pressa tal que se nos tornava difícil segui-los mas como traziam consigo suas lanternas elétricas mesmo se ficássemos para trás poderíamos orientar-nos pela claridade das mesmas. Seguimos como da outra vez ao longo dos rochedos de basalto até chegarmos a um ponto em que uma série de degraus gastos pelo uso conduzia ao seu cimo. Subindo por eles, encontramo-nos numa região acidentada, cheia de elevações de pedra e profundos abismos que embaraçavam o caminho. Atravessando esta região atravancada de formações vulcânicas, chegamos a uma planície circular que rebrilhava à luz fosforescente do fundo do oceano, e bem no meio dela deparamos com um espetáculo que me imobilizou de espanto. Olhando para meus companheiros, pude ver pela expressão de seus rostos que partilhavam plenamente da minha emoção.
Semi-enterrado no lodo via-se um vapor de grande calado. Estava ligeiramente adernado, com a chaminé quebrada e uma das extremidades levantada; seu mastro de traquete fora arrancado, mas quanto ao resto o navio estava intato e tão polido que parecia ter acabado de deixar os estaleiros. Corremos para ele e dali a pouco nos achávamos sob a proa. Podes bem imaginar qual não teria sido nossa emoção quando lemos o nome «Stratford, London» aí escrito. Nosso navio nos seguira ao Pélago de Maracot.
Afinal, depois do primeiro choque, o caso não nos pareceu tão incompreensível. Lembramo-nos do aviso do comandante, das velas colhidas do experiente veleiro norueguês e da ameaçadora nuvem negra que víramos no horizonte. Deveria ter-se desencadeado um súbito ciclone de enorme violência, que pusera a pique o «Stratford». Era evidente que toda a sua tripulação deveria estar morta, pois a maioria dos escaleres ainda pendia das serviolas em diferentes estados de destruição. De qualquer modo, qual o escaler que resistiria a tal furacão? A tragédia deveria ter ocorrido uma ou duas horas após nosso próprio desastre. Talvez a sonda que víramos tivesse sido lançada pouco antes de o temporal desabar. Era terrível e ao mesmo tempo extravagante que ainda estivéssemos vivos, enquanto que os mesmos que haviam lamentado nossa perda já estivessem mortos. Não podíamos saber se o navio se achava ali há muito tempo ou se o atlante o encontrara pouco tempo depois que fora aí ter.
O pobre Howie, o capitão, ou pelo menos o que restava dele, estava ainda em seu posto sobre a ponte de comando, firmemente seguro ao peitoril por suas mãos crispadas. Seu corpo e o de três foguistas eram os únicos que haviam afundado com o navio. Fizemos removê-los um por um sob nossa direção e enterrá-los sob o lodo, com uma coroa de flores marinhas sobre suas sepulturas. Dou estes detalhes para que possam servir de algum conforto à Sra. Howie em sua dor. Os nomes dos foguistas eram-nos desconhecidos.
Enquanto cumpríamos este dever, os atlantes enxameavam sobre o navio. Olhando para cima vi-os por toda parte, como camundongos sobre um queijo. Sua agitação e curiosidade bem mostravam que este era o primeiro navio moderno que viam — ou possivelmente o primeiro vapor. Descobrimos mais tarde que o aparelho que renovava o ar no interior de suas campanas de vidrina não lhes permitia ficar fora do edifício mais que algumas horas, e assim suas possibilidades de fazer reconhecimentos sobre o leito do oceano estava limitada a um restrito número de milhas de sua base central. Puseram imediatamente mãos à obra, tratando de aproveitar do navio tudo o que lhes poderia ser de utilidade. O longo tempo, contudo, que este trabalho exigia, fez com que até hoje ainda não esteja concluído. Ficamos também satisfeitos por podermos voltar às nossas cabinas e trazer de lá os artigos de vestuário e livros que não se achassem irremediavelmente estragados.
Entre os objetos que conseguimos salvar do «Stratford» encontrava-se o livro de bordo, que fora escriturado pelo capitão até o dia de nosso desaparecimento. Era realmente estranho que nós o estivéssemos lendo, e que ele, que o escrevera, estivesse morto. O último registro rezava assim:
«3 de outubro. Os três temerários exploradores desceram hoje, contra a minha vontade e conselhos, ao fundo do oceano, dentro de seu aparelho e o acidente que eu previra teve lugar. Deus guarde suas almas. Eles desceram às onze da manhã com alguma relutância de minha parte, pois parecia avizinhar-se uma tempestade. Desejava ter agido de acordo com meu primeiro impulso, mas isso só serviria para adiar a inevitável tragédia. Despedi-me de cada um deles com a convicção de que não os veria mais. Durante algum tempo tudo correu bem e às onze e três quartos eles haviam atingido a profundidade de trezentas toesas, tendo então encontrado o fundo. O Dr. Maracot enviou-me várias mensagens e tudo parecia em ordem quando repentinamente ouvi sua voz falando agitadamente e notei abalos violentos do cabo. Dali a alguns instantes este arrebentava. É bem possível que estivessem a este tempo sobre um profundo abismo, pois, a uma ordem do doutor o navio havia navegado lentamente para a frente. Os tubos condutores de ar continuaram a desenrolar-se por uma distância que calcularia em meia milha, quando por sua vez rebentaram. É esta a última notícia que jamais poderemos ter do Dr. Maracot, Sr. Headlei e Scanlan.
Merece todavia ser recordada uma circunstância das mais extraordinárias, cuja verdadeira significação ainda não tive tempo de avaliar, pois com este temporal que se aproxima há muita coisa para me distrair a atenção. Uma sondagem fora feita na mesma ocasião e a profundidade que observamos foi de vinte e seis mil e seiscentos pés. Como é lógico, o peso ficara no fundo, mas o cabo fora içado e, por mais incrível que possa parecer, encontrou-se amarrado bem na extremidade do mesmo o lenço do Sr. Headlei, com seu nome escrito num ângulo. Toda a tripulação se acha assombrada e ninguém pode compreender como tal coisa se deu. No meu próximo registro pode ser que tenha r alguma coisa mais a dizer a este respeito. Permanecemos ali algumas horas na esperança de que alguma coisa viesse à superfície e recolhemos o cabo da caixa de aço, cuja extremidade apresentava sinais de ruptura violenta. Preciso agora cuidar do navio, pois nunca vi um céu mais ameaçador e o barômetro marca 28,5, estando a descer rapidamente.»
E foram essas as últimas notícias que nos vieram das mãos de nossos companheiros. Logo depois um ciclone terrível deveria ter desabado sobre eles e posto a pique o navio.
Permanecemos no mesmo até que uma certa sensação de abafamento e um peso sobre o peito nos avisou de que era tempo de regressarmos. Foi então que em nossa viagem para casa uma aventura inesperada nos mostrou os grandes perigos a que aquele povo submarino estava exposto, explicando a causa por que seu número, apesar do tempo decorrido, não era maior. Incluindo os escravos gregos, cremos que não seriam mais que quatro ou cinco mil pessoas. Havíamos descido a escada e começáramos a contornar o matagal de plantas marinhas que cerca os rochedos de basalto, quando Manda apontou agitadamente para cima e acenou furiosamente para um dos nossos companheiros que se achava um pouco afastado do grupo. Ao mesmo tempo ele e os que o cercavam correram para o abrigo de umas altas pedras, arrastando-nos consigo. Só quando já nos achávamos refugiados lá com eles é que vimos a causa do alarma. A alguma distância acima de nós, descendo rapidamente, vimos um grande peixe de forma extravagante. Parecia um grande colchão de penas flutuante, macio e espesso, com a face inferior branca e uma longa franja vermelha, cuja vibração o propelia através da água. Parecia não ter boca nem olhos, mas logo mostrou que se achava terrivelmente alerta. O nosso companheiro que se distanciara mais correu para o mesmo abrigo que nós, mas já era tarde. Vi seu rosto convulso de terror ao prever a sorte que o esperava. Aquele ente horripilante abateu-se sobre ele, envolvendo-o por todos os lados e dando horríveis repelões, como se estivesse malhando seu corpo contra as rochas de coral para reduzi-lo a pedaços. A tragédia se estava passando a poucas jardas de distância de nós e contudo nossos companheiros estavam tão transtornados pelo inesperado fato que pareciam destituídos de todo o poder de ação. Foi Scanlan que se precipitou para fora, e, pulando sobre as largas costas do animal, malhadas de vermelho e pardo, enterrou em seus tecidos fofos a extremidade pontuda de sua vara metálica.
Eu havia seguido o exemplo de Scanlan e finalmente Maracot e todos os outros atacaram o monstro que se escapou vagarosamente, deixando atrás de si um rasto de uma excreção oleosa e pegadiça. Nosso auxílio, contudo, chegara tarde demais, pois os golpes do grande peixe haviam quebrado o invólucro de vidrina do atlante e este se afogara. Foi um dia de luto aquele em que carregamos seu corpo inanimado para o refúgio, mas foi também um dia de triunfo para nós, pois nossa intervenção pronta elevara-nos grandemente no conceito de nossos companheiros. Quanto àquele estranho peixe, o Dr. Maracot nos garantiu que era um espécime análogo ao chamado peixe cobertor, já bem conhecido dos ictiólogos, mas de proporções extraordinariamente maiores.
Falei deste animal porque sucedeu havermos presenciado uma tragédia causada por ele, mas eu poderia — e talvez mesmo o faça — escrever um livro sobre as singulares variedades de vida com que ali deparamos. O vermelho e o negro são as cores que prevalecem nos animais das grandes profundidades; quanto à vegetação é de um verde oliva dos mais pálidos e de fibras tão rígidas que raramente são arrastadas à tona por nossas redes de arrasto, de modo que a ciência veio a crer por isso que o leito do oceano é completamente desprovido dela. Numerosos seres marinhos são lindíssimos, mas outros são tão horrivelmente grotescos que parecem visões de delírio e tão ameaçadores como nenhum animal terrestre. Vi uma arraia negra de trinta pés de comprimento que se utilizava para o ataque de sua longa cauda, de que bastaria um só golpe para matar qualquer criatura viva. Vi também um animal parecido com uma rã, de olhos verdes e salientes, que se resumia quase a uma ávida boca com um desmedido estômago atrás. Encontrá-lo é morte certa, a não ser que se tenha uma lanterna elétrica com que o repelir. Vi a enguia vermelha cega, que vive entre as rochas e mata pela emissão de um veneno e vi também o gigantesco escorpião marinho, um dos terrores do pélago e o peixe elétrico que se embosca nos matagais marinhos.
Uma vez também tive oportunidade de ver a verdadeira serpente marinha, um animal que raramente tem aparecido a olhos humanos, pois vive nas grandes profundidades e só é vista na superfície quando alguma convulsão submarina a faz sair de seu habitai. Duas delas passaram nadando, ou melhor, rastejando por nós um dia, enquanto Mona e eu nos ocultávamos entre ramificações de lamelárias. Eram enormes — de uns dez pés de altura por duzentos de comprimento, pretas em cima, de um branco de prata na face inferior, com uma grande franja sobre as costas e olhos pequenos, pouco maiores que os de um boi. Desta e de muitas outras coisas encontrar-se-á detalhada descrição no relatório do Dr. Maracot, se algum dia for encontrado.
As semanas se sucediam às semanas. Nossa nova vida tornara-se-nos agradável com o tempo e lentamente começávamos a aprender desta língua há muito esquecida o suficiente para podermos conversar um pouco com nossos companheiros. Há no refúgio inumeráveis objetos para estudo e Maracot já conseguiu aprender de sua velha química o suficiente para revolucionar todas as idéias terrestres sobre o assunto, se conseguir transmitir seus conhecimentos. Entre outras coisas eles conseguiram meios de desintegrar o átomo, e se bem que a energia desprendida seja menor que a prevista por nossos cientistas, mesmo assim põe-lhes em mãos um grande reservatório de força. Seus conhecimentos sobre as propriedades e a natureza do éter estão também muito mais adiantados que os nossos e mesmo aquela estranha transformação do pensamento em imagens, por cujo meio lhes havíamos contado nossa história e eles a sua própria, nada mais era, em última análise, que a materialização de vibrações etéreas.
Todavia, apesar de seus conhecimentos profundos, havia certos pontos relacionados com modernas descobertas científicas que haviam escapado à atenção de seus antepassados.
Coube a Scanlan demonstrar este fato. Durante várias semanas o víramos num estado de desusada agitação, a custo contida, como quem carrega consigo um grande segredo, e não raro o surpreendíamos a rir consigo mesmo. Apenas o víamos de vez em quando durante este período, pois ele estava extremamente ocupado e seu único amigo e confidente era um atlante de nome Berbrix, encarregado de uma seção dos maquinismos. Scanlan e Berbrix, se bem que quase só se comunicassem por meio de sinais e tapas amistosos nas costas, haviam-se tornado muito bons amigos e agora viviam continuamente juntos. Uma tarde Scanlan nos apareceu radiante.
— Doutor, disse ele a Maracot, arranjei uma coisa nova para mostrar a essa gente. Eles nos mostraram uma ou duas coisas interessantes e parece que já é tempo de retribuirmos. Que acha de se arranjar uma reunião amanhã à noite para uma exibiçãozinha?
— Jazz ou charleston? perguntei.
— Que charleston nada! Espere que verá. Será um sucesso formidável. Mas basta de palavrórios por enquanto, Bo. Amanhã verá o que é.
De conformidade com isto, a comunidade foi reunida na noite seguinte no salão grande. Scanlan e Berbrix se achavam na plataforma, radiantes de orgulho. Um deles apertou um botão e no mesmo instante…
— «Transmite 2L.O.», gritou uma voz clara. «De Londres para as Ilhas Britânicas. Previsão do tempo». Seguiram-se as fórmulas habituais sobre depressões e anticiclones. «Boletim de Notícias. Sua Majestade o Rei inaugurou esta manhã uma nova ala no Hospital de Crianças de Hammersmith…» e assim por diante, de modo usual. Parecia achar-monos de novo na velha Inglaterra laboriosa, entregue como de costume ao seu trabalho diário e com as largas costas curvadas sob o peso de suas dívidas de guerra. Ouvimos em seguida as notícias do estrangeiro e de esportes. O velho mundo continuava sempre o mesmo. Nossos amigos atlantes ouviam cheios de espanto, mas sem compreender. Mas quando, após o noticiário, a banda da Guarda rompeu os primeiros acordes da marcha do Lohengrin, um verdadeiro clamor de entusiasmo elevou-se do povo e era engraçado vê-los correr para a plataforma, remexendo as cortinas e olhando atrás das telas para descobrir donde vinha a música. Sim, nós imprimimos imperecíveis sinais nossos naquela civilização submarina.
— Não, doutor, disse Scanlan mais tarde. Não me era possível fazer uma estação transmissora. Eles não têm os materiais necessários nem eu os conhecimentos. Mas lá em casa eu sabia manejar um aparelho de duas válvulas meu, e com uma antena ao lado dos varais de roupa no terreiro pegava qualquer estação dos Estados Unidos. Parecia-me absurdo que com toda esta eletricidade em mãos e com a habilidade desta gente em trabalhos de vidro, não fôssemos capazes de construir uma coisa qualquer capaz de apanhar umas ondas de rádio, pois decerto elas atravessariam a água com tanta facilidade como o ar. Berbrix quase teve um ataque quando peguei uma estação pela primeira vez, mas agora parece que já está acostumado.
Entre as descobertas dos químicos atlantes conta-se um gás que é nove vezes mais leve que o hidrogênio e que Maracot batizou com o nome de levigênio. Foram suas experiências com o mesmo que nos sugeriram a idéia de lançar bolas de vidro com informações sobre nosso destino para a superfície do oceano.
— Fiz Manda compreender minha idéia disse-me ele. Já deu ordens para os encarregados de trabalhos em sílica, e dentro de um ou dois dias os globos estarão prontos.
— Mas como poderemos pôr-lhes dentro os papéis? objetei.
— Haverá uma pequena abertura para a penetração do gás. Enfiaremos os papéis por ela e estes habilidosos operários poderão então fechar o orifício. Estou certo de que quando as largarmos elas subirão para a superfície.
— E flutuarão sem serem vistas por um ano.
— É possível. Mas a bola refletirá os raios solares e assim certamente chamará a atenção. Nós nos achávamos no caminho dos navios que correm entre a Europa e a América do Sul. Não vejo razões por que, se mandarmos várias, uma pelo menos não seja encontrada.
E eis aí, meu caro Talbot, ou vós outros que ledes esta narrativa, como foi esta ter às vossas mãos. Mas é bem possível que disto ainda nasçam conseqüências maiores. Foi do cérebro fértil do mecânico americano que nos veio a idéia.
— Olhem, amigos, — disse ele uma vez em que nos achávamos a sós em nosso quarto, — não há dúvidas que estamos muito bem aqui; a comida é boa, o vinho é bom e encontrei uma pequena que ganha de todas de Filadélfia, mas apesar de tudo há vezes em que tenho vontade de tornar a ver a verdadeira terra de Deus.
— É bem possível que todos nós pensemos assim, disse eu, mas não compreendo que esperanças possas alimentar de o conseguir.
— Diga-me uma coisa, Bo: não acha que se essas bolas de gás podem levar para cima nossas mensagens talvez possam levar também nossas pessoas? Não pense que estou brincando; estou falando sério. Reunindo umas três ou quatro delas já seria suficiente para nos elevar. Vestimos então nossas campanas de vidro, amarramo-nos nas bolas e bastará soltá-las para subir. O que nos poderá barrar o caminho até à superfície?
— Um tubarão talvez.
— Que tubarões nada! Passaríamos tão depressa por qualquer deles que mal nos veriam. Pensariam que éramos apenas três raios de luz. Creio que haveríamos de pegar tal velocidade que pularíamos a cinqüenta pés de altura no ar quando chegássemos lá em cima. Garanto que o marinheiro que nos visse subir assim faria na mesma hora uns vinte sinais da cruz.
— Mas supondo isso possível, o que sucederá depois?
— Por São Pedro, deixe o depois de lado! Vale a pena arriscar. Por mim eu estou pronto a tentar a sorte.
— Eu também desejo muito voltar ao mundo nem que seja apenas para apresentar nossas observações às sociedades científicas, disse Maracot. Só a minha influência pessoal os poderá convencer da importância dos novos conhecimentos que adquirimos. Eu veria com bons olhos qualquer tentativa para isso.
Havia boas razões, como explicarei mais tarde, para me tornar o menos entusiasta dos três.
— Seria uma loucura rematada. Se não tivermos alguém à nossa espera na superfície, vogaremos à toa de um lado para outro até morrermos de fome e sede.
— Mas, homem, como poderíamos ter alguém à nossa espera?
— Talvez mesmo isso se possa arranjar, disse Maracot. Poderemos dar a latitude e longitude exatas de nossa posição com aproximação de uma ou duas milhas.
— E eles então jogarão uma escada, disse eu um tanto amargamente.
— Qual escada, qual nada! O doutor tem razão. Olhe, Sr. Headlei, ponha naquela carta que está mandando para o universo — Deus meu! só queria ver as notícias dos jornais! — que nós estamos a 27° de latitude norte e 28°14′ de longitude oeste ou qualquer outra coisa mais exata. Compreendeu? Dirá então que três das figuras mais importantes da história, o grande cientista Maracot, o futuro colecionador de bichos Headlei e Bob Scanlan, um mecânico destemido e o orgulho de Merribank, estão todos chorando e uivando por socorro cá embaixo, no fundo do mar. Compreendeu minha idéia?
— Muito bem, e daí?
— O resto é por conta deles. É um apelo que eles não poderão esquecer. Será mais ou menos como o caso que li da viagem de Stanley, para salvar Livingstone. Cabe a eles achar algum modo de nos pescar daqui ou de nos apanhar lá do outro lado se pudermos dar o pulo sozinhos.
— Nós mesmos poderemos sugerir o meio, disse o professor. Eles poderiam atirar uma sonda nestas águas. Nós estaríamos à espera dela, e, quando viesse, amarrar-lhe-íamos embaixo um bilhete recomendando-lhes que esperassem por nós.
— Ótima idéia! exclamou Bill Scanlan. É o melhor que temos a fazer.
— E se alguma senhora quisesse partilhar nossa sorte, tanto poderiam ir quatro como três, disse Maracot, olhando-me com um sorriso brejeiro.
— Quanto a isso, cinco é tão fácil como quatro, disse Scanlan. Mas está resolvido então, Sr. Headlei. Escreva isso que lhe garanto que dentro de seis meses estaremos de volta ao Tâmisa.
Assim, vamos agora lançar nossas duas bolas a esta água que é para nós o mesmo que o ar para ti. Nossos dois pequenos globos de vidro irão subir. Serão destruídos no caminho? É possível. Ou podemos esperar que alguém os recolha na superfície? Deixamos isto nas mãos dos deuses. Se nada puder ser feito por nós, pelo menos que aqueles que nos estimam saibam que estamos vivos e felizes. Se por outro lado esta sugestão puder ser aproveitada e conseguidos o dinheiro e energia necessários para a empresa, teremos proporcionado os meios que possibilitam sua realização. Enquanto isso, adeus — ou será até à vista?
Assim terminava o manuscrito encontrado na bola de vidrina.
A narrativa precedente dava conta de todos os fatos que haviam chegado ao nosso conhecimento e já estes papéis se achavam em mãos do editor quando sobreveio um epílogo dos mais inesperados e sensacionais. Refiro-me à salvação dos protagonistas desta aventura pelo «Marion», o iate movido a vapor do Sr. Faverger, e do relatório enviado pelo radiotelegrafista desse navio e captado pela estação receptora das Ilhas de Cabo Verde, que o transmitiu à Europa e América. Este relatório fora redigido pelo sr. Key Osborne, o conhecido representante da Associated Press.
Parece que imediatamente após haver chegado à Europa a primeira notícia sobre o paradeiro do Dr. Maracot e seus amigos, uma expedição havia sido cuidadosa e eficientemente aprestada com o fim de tentar sua salvação. O Sr. Faverger pusera generosamente o seu famoso iate à disposição de seus organizadores, tomando parte pessoalmente na dita expedição. O «Marion» partiu de Cherburgo em junho, recebeu a bordo em Southampton o Sr. Key Osborne e um operador cinematográfico e seguiu imediatamente para o ponto do oceano indicado no documento original. Este foi alcançado no dia primeiro de julho.
Uma sonda de grandes profundidades foi lançada e lentamente arrastada pelo fundo do oceano. Na sua extremidade, ao lado de pesado lastro de chumbo estava suspensa uma garrafa contendo uma mensagem. Esta dizia: «Sua narrativa foi recebida pelo mundo e aqui estamos para auxiliá-los. Enviamos esta mesma mensagem pelo rádio na esperança de que a possam captar. Cruzaremos lentamente a região. Depois que retirarem esta garrafa queiram colocar nela sua resposta. Agiremos de conformidade com suas instruções».
Durante dois dias o «Marion» navegou lentamente de um para outro lado sem resultado. No terceiro uma grande surpresa esperava o grupo de salvadores. Uma pequena bola resplendente pulou da água a algumas centenas de jardas do navio e pudemos ver depois que era um globo vítreo oco, da espécie que fora descrita no documento original. Quebrando-a com alguma dificuldade, leu-se a seguinte mensagem:
«Obrigados, caros amigos. Muito admiramos sua grande lealdade e desprendimento. Recebemos seus radiogramas com facilidade e apenas estamos em condições de poder responder-lhes deste modo. Esforçamo-nos por alcançar sua sonda, mas as correntes marinhas a elevam muito alto e a velocidade dela é maior do que a do mais rápido de nós, por causa da resistência da água. Pretendemos executar nossos planos amanhã cedo, às seis horas, correspondendo, de acordo com nossos cálculos, ao dia 5 de julho, terça-feira. Iremos um de cada vez, de modo que qualquer coisa que suceda possa ser transmitida aos que devam ir depois. Mais uma vez, sinceros agradecimentos.
Damos agora a palavra ao sr. Osborne:
«Era uma linda manhã. O profundo mar de safira achava-se liso como um lago, e nem a menor nuvem turbava a limpidez maravilhosa do céu azul. Desde bem cedo toda a tripulação do «Marion» se achava a postos e aguardava os acontecimentos com o mais intenso interesse. Ao se aproximarem as seis horas, nossa expectativa se tornava cada vez mais penosa. Um vigia fora postado no mastro de sinais e faltavam justamente cinco minutos para a hora marcada quando o escutamos gritar e o vimos apontando para a água. Todos nós corremos para o lado que ele apontava e eu consegui içar-me a um dos botes, donde pude observar tudo. Vi através da água tranqüila alguma coisa que parecia uma bola de prata subindo com grande rapidez das profundezas do oceano. Atingiu a superfície a umas duzentas j ar das do navio e subiu em linha reta no ar. Era um belo globo brilhante de três pés de diâmetro, que, depois de se elevar a grande altura, derivou, levado por uma corrente de ar, exatamente como sucederia com um desses balõezinhos de criança. Era um espetáculo maravilhoso, mas encheu-nos de apreensão, pois receávamos que tivesse trazido uma carga consigo e que esta se houvesse desprendido no caminho através das águas. Expediu-se imediatamente um radiograma:
«Seu mensageiro apareceu perto do navio. Não trazia nada preso por fora e foi arrastado pelo vento.» Logo em seguida arriamos um bote de modo a estarmos preparados para qualquer eventualidade.
Logo depois das seis horas houve outro sinal de nosso vigia e dali a um instante via através das águas outro globo de prata, que subia muito mais lentamente que o primeiro. Chegando à superfície ele flutuou no ar, mas sua carga foi conservada sobre a água. Examinando-a, vimos que era constituída por um grande pacote de livros, papéis e vários outros objetos, tudo encerrado num invólucro de pele de peixe. Foi içado escorrendo água para o tombadilho e expedido um novo radiograma, enquanto esperávamos ansiosamente pela bola seguinte.
Não demorou muito tempo a vir. Surgiu de novo a bola de prata e atravessou novamente a superfície, mas desta vez aquele globo brilhante subiu a grande altura no ar tendo suspenso, com surpresa nossa, o corpo esbelto de uma mulher. Fora apenas o impulso que a fizera subir e dali a poucos momentos era ela levada para o lado do navio. Um círculo de couro fora firmemente adaptado ao hemisfério superior da bola e deste círculo desciam longas tiras que estavam presas a um largo cinto de couro, ao redor de sua fina cintura. A parte superior de seu corpo estava coberta por um estranho invólucro piriforme de vidro — chamo-lhe vidro, mas realmente era do mesmo material leve e resistente que a bola. Era quase transparente e apresentava finas veínulas prateadas através de sua substância. Este invólucro de vidro possuía peças elásticas que se adaptavam na cintura e nos ombros, tornando completamente impossível a entrada da água, e era provido no interior de estranhos aparelhos químicos de aspecto esquisito, mas muito leves e práticos para a renovação do ar. Com alguma dificuldade foi removido o invólucro de vidro e a moça içada para o tombadilho. Ela se achava desacordada, mas sua respiração regular encorajava-nos a supor que logo se restabeleceria dos efeitos daquela rápida viagem e brusca mudança de pressão. Presumimos ser ela a mulher atlante a que a primeira mensagem se referia como chamando-se Mona e, se a podemos tomar como amostra, eles constituem realmente uma raça que vale a pena reintroduzir na terra. Seu rosto é moreno e gracioso, de traços regulares e delicados; tem longos cabelos negros e magníficos olhos amendoados, que olhavam agora ao seu redor num encantador espanto. Enfeites de conchas e nácar ornavam-lhe a túnica de cor creme e os cabelos escuros. Não se poderia imaginar mais perfeita Náiade do Pélago, uma personificação mais viva do mistério e beleza do mar.
Vimos a consciência voltar aos poucos àqueles maravilhosos olhos e subitamente ela se pôs de pé num salto, com a vivacidade de uma corça selvagem, e correu para a amurada do navio chamando: «Cirus! Cirus!»
Já havíamos acalmado a ansiedade dos que esperavam embaixo por meio de um radiograma. Logo em seguida, em rápida sucessão, vimo-los chegar um de cada vez. Elevavam-se trinta ou quarenta pés no ar e caíam logo na água, donde rapidamente os retirávamos. Todos os três chegaram desacordados à superfície e saía sangue pelo nariz e ouvidos de Scanlan, mas no fim de uma hora já estavam novamente aptos a por-se em pé. O primeiro ato de cada um foi, ao que me parece, bem característico. Scanlan foi arrastado por um grupo jovial até o bar, donde vêm agora exclamações alegres, muito em detrimento deste trabalho. O Dr. Maracot pegou o maço de papéis, tirou um deles, coberto apenas, ao que me parecia, por símbolos algébricos, e desapareceu pela escada abaixo, ao passo que Cirus Headlei correu para o lado de sua estranha companheira, parecendo ter tenções de nunca mais a deixar. O caso está neste pé e confiamos em que nossa fraca estação possa levar o nosso radiograma até a estação de Cabo Verde. Detalhes mais pormenorizados desta espantosa aventura virão mais tarde, como convém, de seus próprios protagonistas.»
São numerosas as pessoas que têm escrito tanto a mim, Cirus Headlei, aluno da Escola Rhodia de Oxford, como ao Professor Maracot e mesmo a Bill Scanlan desde nossa notável estadia no fundo do Atlântico, onde nos foi dado, num local situado a 200 milhas a sudoeste das Canárias, fazer uma descida de que não só resultou a modificação total de nossas idéias sobre a vida e pressão nas grandes profundidades, como ainda revelou a sobrevivência de uma antiga civilização sob condições incrivelmente difíceis. Nestas cartas constantemente nos pedem para darmos maiores detalhes sobre nossa aventura. Como é lógico, minha primeira narrativa era muito superficial, embora desse conta da maioria dos fatos. Houve alguns sucessos, porém, que não foram narrados e principalmente o pavoroso episódio do Senhor do Torvo Semblante. Este envolvia certos fatos e conclusões de tão extraordinária natureza que todos nós julgamos melhor naquela ocasião deixá-lo inteiramente de lado. Agora, contudo, que a ciência aceitou nossas conclusões e — acrescentarei — que a sociedade aceitou minha noiva, ficou estabelecida a nossa veracidade e talvez nos possamos aventurar a uma narrativa que antes provocaria a incredulidade. Antes, porém, de encetar a narração deste estranho episódio, tratarei de alguns sucessos que com ele se relacionam, reminiscências daqueles meses cheios de imprevisto que passamos na terra submersa dos atlantes, os quais, armados de suas campanas de vidrina, conseguiam caminhar pelo leito do oceano com a mesma facilidade com que aqueles londrinos que agora vejo de minhas janelas do Hyde Park Hotel estão a passear entre os canteiros de flores.
A princípio quando fomos recebidos por aquele povo após nossa queda da superfície, estávamos mais na posição de prisioneiros que de hóspedes. Desejo agora narrar como, graças ao Dr. Maracot, deixamos lá embaixo tal renome que a nossa lembrança passará aos seus anais como a de alguma visita celeste. Nada souberam de nossa partida, que teriam impedido se pudessem, e assim já deve haver entre eles uma lenda sobre nosso regresso a alguma esfera celestial, levando conosco a flor mais bela e adorável da sua gente.
Procurarei agora expor em sua devida ordem algumas das estranhas coisas que observamos naquele mundo maravilhoso, e também algumas das aventuras que nos sucederam até depararmos com a maior de todas elas — uma que deixará para sempre sua impressão sobre todos nós — a volta do Senhor do Torvo Semblante. Sob certos pontos de vista, desejaria que nos tivéssemos demorado mais tempo no Pélago de Maracot, pois lá ainda existiam para nós muitos mistérios. Além disso, já estávamos aprendendo rapidamente a língua que falavam, de modo que logo teríamos muito maior facilidade para obter informações. - A experiência ensinara a este povo a distinguir o terrível do inofensivo. Um dia lembro-me de que houve um súbito alarma. Acompanhando o exemplo de nossos hóspedes, todos nós vestimos nossas campanas de oxigênio e lançamo-nos a correr pelo leito do oceano, se bem que a razão de tudo isto nos fosse um mistério. Não havia porém engano possível quanto à expressão de horror e agitação que havia nos rostos dos que nos cercavam. Quando saímos para a planície encontramos um grande número de mineiros gregos que se dirigiam a toda a pressa para a porta da nossa colônia. Haviam caminhado com tal afobamento e estavam tão cansados que muitos caíam no lodo completamente esgotados, e era mais que evidente que constituíamos uma expedição de socorro, com o objetivo de recolher estes e apressar os retardatários. Não vimos nenhuma arma em poder de nossos companheiros nem sinais que denunciassem propósitos de resistência contra o perigo que se avizinhava. Logo que o último mineiro foi empurrado através da porta nós voltamos o olhar para o caminho por que haviam vindo. Tudo o que podíamos lobrigar eram duas nuvens esverdeadas, lembrando fogos-fátuos, luminosas no centro, apresentando radiações para as bordas, que pareciam antes derivar que mover-se em nossa direção. Ao vê-las assim claramente, se bem que estivessem ainda a meia milha de distância, nossos companheiros foram tomados de pânico e puseram-se a bater na porta, ansiosos por entrar o mais depressa possível. Era realmente atemorizador ver estes dois entes maléficos aproximando-se, mas as bombas trabalhavam rapidamente e dali a pouco tempo nos achávamos novamente em segurança. Acima da porta havia um grande bloco de cristal transparente, de dez pés de comprimento por dois de largura, com luzes colocadas de modo tal que lançavam um forte clarão para o exterior. Subindo em escadas conservadas ali especialmente para esse fim, vários dentre nós, inclusive eu mesmo, ficamos à espreita. Vi aqueles dois estranhos e bruxuleantes círculos de luz pararem em frente da porta. Vendo isto, os atlantes de um e de outro lado de mim estremeceram de pavor. Subitamente um daqueles entes sombrios elevou-se com sua trêmula luminosidade através da água e dirigiu-se para a nossa janela de cristal. Imediatamente meus companheiros puxaram-me para fugir ao seu campo de visibilidade, mas parece que devido à minha negligência parte de meus cabelos não ficou a salvo da influência maléfica — qualquer que fosse ela — emitida por estes estranhos seres. Possuo até hoje uma mecha deles completamente branca desde esse dia.
Só muito tempo depois é que os atlantes ousaram abrir a porta do refúgio, e quando por fim foi enviado um explorador, este partiu entre apertos de mão e tapas amistosos nas costas, como uma pessoa que pratica uma meritória façanha. A notícia que trouxe é de que não havia mais perigo, e logo a alegria voltou à comunidade e esta estranha visita pareceu ser esquecida. Somente ficamos sabendo, por ouvir a palavra «Praxa» pronunciada em vários tons de terror, que era este o nome daqueles entes. A única pessoa que de fato se alegrou com o incidente foi o Professor Maracot, ao qual nos custou impedir que saísse à sua procura.
«Uma nova espécie de vida, parte orgânica, parte gasosa e visivelmente inteligente», comentou ele. «Um espírito saído do inferno» observou Scanlan menos cientificamente.
Saindo dali a dois dias para uma expedição de estudos, quando caminhávamos entre os ervaçais das plantas marinhas capturando em nossas redes de mão espécimes de pequenos peixes, demos subitamente com o corpo de um dos operários das minas de carvão, que sem dúvida fora surpreendido em sua fuga por aqueles estranhos entes. A campana de vidro fora quebrada — o que exigia enorme força, pois a substância de que é feita é extraordinariamente resistente, como viram quando quiseram tirar meu primeiro documento. Os olhos do mineiro haviam sido arrancados, mas era este o único sinal de violência que se notava em seu corpo.
— Um gastrônomo de gostos bem delicados! disse o professor depois de nosso regresso. Existe na Nova Zelândia uma ave de rapina que mata o cordeiro apenas para retirar um pedaço particular de gordura que há acima dos rins. Este animal mata então o homem por causa dos olhos. Quer nos céus quer nas águas a natureza apenas conhece uma lei — a da crueldade fria.
Tivemos numerosos exemplos dessa terrível lei nas profundezas do oceano. Lembro-me por exemplo de que várias vezes observamos um curioso sulco no lodo batibiano, como se um barril cheio tivesse sido rolado sobre ele. Apontamo-lo para os nossos companheiros e quando pudemos interrogá-los tentamos fazer com que nos contassem alguma coisa sobre esse animal. Como seu nome, nossos amigos repetiram várias vezes um daqueles encadeamentos ásperos de sílabas que tão freqüentemente se encontram na linguagem dos atlantes, e que não podem ser reproduzidos nem por línguas de europeus nem pelo nosso alfabeto. Krixchok é talvez uma aproximação dessa palavra. Quanto ao seu aspecto, utilizamo-nos para sabê-lo do refletor do pensamento, como,sempre fazíamos em tais conjunturas e por cujo intermédio nossos amigos nos podiam dar uma clara idéia do que estava em seus espíritos. Por este meio mostraram-nos eles a imagem de um estranho ser marinho que o professor apenas pôde classificar como uma gigantesca lesma do mar. Parecia ser um animal de grande tamanho, em forma de salsicha, com olhos situados na extremidade de pedúnculos e possuindo um basto revestimento de pêlos ou cerdas. Enquanto nos mostravam esta imagem, nossos amigos exprimiam-nos por gestos o horror e repulsa que experimentavam.
Mas tudo isto, como poderia prever quem conhecesse bem Maracot, só serviu para ainda mais inflamar sua curiosidade científica, tornando-o ainda mais ansioso por determinar de um modo exato a espécie deste monstro desconhecido. Por isso, não fiquei surpreendido quando em nossa primeira excursão ele parou no ponto em que se via o rasto do mesmo sobre o lodo e voltou-se deliberadamente para a enrediça de plantas marinhas e rochas basálticas donde parecia ter vindo. No momento em que deixamos a planície, porém, perdemos de vista o rasto, mas as rochas formavam naquele ponto um abrigo natural que deveria provavelmente conduzir à toca do monstro. Estávamos todos os três armados com o varão metálico que os atlantes geralmente carregam consigo, mas eles me pareciam armas bem frágeis para se enfrentarem perigos desconhecidos. O professor, porém, avançou na frente e o único recurso que tínhamos era acompanhá-lo.
Aquela garganta de rochas estendia-se para cima, tendo as paredes formadas de enormes blocos de formação vulcânica e o chão coberto de uma profusão de longas lamelárias vermelhas e negras, que são características das extremas profundidades oceânicas. Um milheiro de belas ascídias e equinodermas de cores vivas e formas caprichosas espreitava dentre esta vegetação povoada de estranhos crustáceos e baixas formas da vida animal. Avançávamos lentamente, pois não é fácil caminhar nas profundezas marinhas, ainda mais tendo-se que vencer uma subida escarpada. Subitamente, porém, avistamos o animal que procurávamos e a visão não era das mais animadoras.
Estava com o corpo saído a meio de sua toca, que era uma escavação num penedo basáltico. Viam-se cerca de cinco pés de um corpo peludo e notamos o mover de seus olhos grandes, como pires, amarelos e brilhantes como ágatas, girando lentamente sobre seus longos pedículos ao pressentir nossa aproximação. Devagar, então, começou a sair de seu abrigo, agitando seu corpo ao caminhar como uma lagarta. Em dado momento levantou a cabeça a uns quatro pés do solo como para ter uma visão melhor de nós e observei então que tinha presa de cada lado do pescoço uma formação semelhante à sola de um sapato de tênis, ambas da mesma cor e tamanho, e de aspecto sulcado. Não conseguia conjeturar o que significaria isso, mas logo iríamos ter uma lição prática sobre sua utilidade.
O professor enristara seu varão em posição ofensiva e pela expressão resoluta de seu rosto vi logo que a esperança de obter um espécime raro varrera todo o temor de seu espírito. Scanlan e eu, porém, não estávamos assim tão confiantes, mas não podíamos abandonar o velho cientista, por isso conservamo-nos firmemente ao seu lado. O monstro, após aquele longo olhar, começou lenta e desajeitadamente a descer a encosta, arrastando-se entre as rochas e levantando de tempos a tempos seus olhos pediculados para ver o que fazíamos. Vendo-o adiantar-se tão lentamente, sentíamo-nos em segurança, pois a qualquer momento poderíamos fugir deixando-o para trás. E mal sabíamos no entanto que nos achávamos a dois passos da morte!
Foi certamente um aviso da Providência. O monstro continuava em seu avanço lerdo e sorrateiro e deveria achar-se a umas cinqüenta j ar das de nós quando um grande peixe saiu do matagal das algas que ficava ao lado da garganta e avançou lentamente por ela. Achava-se, porém, a meio caminho entre o monstro e nós quando deu subitamente um salto convulsivo, voltando-se de ventre para cima, e caiu morto no chão. No mesmo instante todos nós sentimos um estremeção estranho e desagradável percorrer-nos o corpo, ao mesmo tempo que nossos joelhos cediam ao nosso peso. O velho Maracot era tão prudente quanto audacioso e compreendera num momento a situação, desistindo da caçada. Estávamos em frente de um animal que lançava descargas elétricas para matar sua presa, e nossos varões metálicos eram tão inúteis contra ele como contra uma metralhadora. Se não fosse a feliz coincidência de aquele peixe revelar sua tática, teríamos esperado até que ele se achasse a uma distância da qual poderia despejar sobre nós toda a carga de sua bateria, que seguramente nos mataria. Raspamo-nos o mais rapidamente que pudemos, resolvidos para o futuro a deixar a gigantesca lesma em paz.
Eram estes alguns dos mais terríveis perigos do pélago. Outro, ainda, era o pequeno e terrível Hydrops ferox, como o batizou o professor. Era um peixe vermelho, pouco maior que um arenque, e possuía uma grande boca e uma formidável fileira de dentes. Era inofensivo nas circunstâncias ordinárias, mas o derramamento de sangue, mesmo de quantidades mínimas, atraía-o num instante e não havia então salvação possível para a vítima, que era cercada por legiões de atacantes. Vimos certa vez um horrível espetáculo nos poços de retirar carvão, onde um escravo teve a infelicidade de cortar a mão. Num instante, vindos de todos os lados, milhares de peixes caíam sobre ele. Inutilmente este se atirou ao chão, lutando desesperadamente; inutilmente seus companheiros horrorizados os golpearam com suas pás e picaretas. A parte inferior de seu corpo, abaixo de sua campana, dissolveu-se à nossa vista sob uma nuvem vibrante de peixes. Num momento víamos um homem. Um instante depois já só distinguíamos uma massa sangrenta com brancos ossos salientes. Dali a um minuto só se viam os ossos abaixo da cintura: era um meio esqueleto deitado no fundo do mar. Fora um espetáculo tão horrível que ficamos todos profundamente abalados. Scanlan caiu mesmo com um desmaio, dando-nos grande trabalho para o transportarmos para o refúgio.
Mas os estranhos espetáculos que presenciávamos nem sempre eram horríveis. Lembro-me de um, por exemplo, que nunca se apagará de nosso espírito. Foi numa daquelas excursões que gostávamos de fazer, algumas vezes com um guia atlante e outras sozinhos, depois que nossos hóspedes compreenderam que não necessitávamos de constantes cuidados e vigilância. Passávamos certa vez por um trecho da planície que nos era muito familiar quando verificamos, cheios de surpresa, que uma grande faixa de areia amarela, de cerca de meia jeira de superfície, fora depositada ou descoberta, posteriormente à nossa última visita. Contemplávamos aquele espetáculo com alguma surpresa, perguntando-nos que corrente submarina ou que movimento sísmico havia causado o seu aparecimento, quando vimos cheios de espanto toda aquela faixa se elevar, e passar nadando, com lentas ondulações, bem acima de nossas cabeças. Era tão grande aquele palio movediço que levou tempo relativamente considerável — um minuto ou dois — a passar acima de nós. Era um gigantesco peixe chato, não muito diferente, pelo que o professor pôde observar, de um de nossos pequenos rodovalhos, alcançando estas extraordinárias dimensões devido talvez à abundante nutrição que encontrava nos depósitos batibianos. Vimos seu vulto enorme, branco e dourado, desaparecer tremeluzindo e ondulando na escuridão das camadas mais elevadas das águas e nunca mais o avistamos.
Havia um outro fenômeno das grandes profundidades pelo qual não esperávamos. Eram os furacões que freqüentemente ocorrem aí. Parecem ser causados pela passagem periódica de correntes submarinas, difíceis de prever e terríveis em seus efeitos, causando em sua passagem tanta confusão e transtorno como as ventanias mais violentas da terra. Sem isto gerar-se-iam sem dúvida putrefações resultantes da estagnação, havendo portanto aqui, como em tudo na natureza, um excelente fim em vista; o espetáculo contudo não deixava por isso de ser alarmante.
Na primeira ocasião em que me vi envolvido em tal ciclone de água havia saído com aquela muito cara pessoa a que já aludi, Mona, a filha de Manda. Havia mais ou menos a uma milha de distância da colônia uma pitoresca elevação recoberta de algas das mais variadas cores. Era este o jardim dileto de Mona, que o tratava com especial carinho. Nele se emaranhavam lindas serpulárias cor-de-rosa, ofiúrides de cor púrpura e holotúrias rubras. Naquele dia ela me levara para vê-lo e foi enquanto estávamos lá que a borrasca começou. Tão forte era a corrente que subitamente desabou sobre nós que só nos amparando mutuamente e nos abrigando atrás das rochas é que conseguimos impedir que a água nos arrastasse. Notei que esta violenta torrente de água era quente, de um calor apenas suportável, mesmo, o que pode significar que haja uma origem vulcânica nestes fenômenos e que sejam o resultado de algum distúrbio sísmico submarino em regiões distantes do leito do oceano. A lama orgânica da grande planície foi elevada em turbilhões pela força da corrente e a claridade diminuída devido à quantidade de lodo em suspensão na água que nos cercava. Encontrar o caminho para voltarmos era completamente impossível, pois estávamos totalmente desorientados e de qualquer modo mal nos podíamos mover contra a força das águas. Para complicar ainda mais nossa situação, um peso crescente sobre o peito e certa dificuldade em respirar revelou-me que nossa provisão de oxigênio começava a esgotar-se.
É nestas ocasiões, quando nos achamos na imediata presença da morte, que as grandes paixões surgem à tona, submergindo todos os sentimentos de menor intensidade. Só naquele momento é que fiquei sabendo que amava minha graciosa companheira, que a amava com todo o meu coração, amava-a com um amor que se enraizara tão profundamente em minha alma que fazia parte de meu próprio ser. Que estranho sentimento é um amor como esse! Como é difícil analisá-lo! Não era pelo seu rosto nem pelo seu corpo adorável que a amava. Não era por sua voz, se bem que fosse a mais musical que ouvira até então, nem por estimar seus dotes de espírito, pois só podia ler seus pensamentos na expressão mutável de seu rosto. Não, o que nos unia para sempre era alguma coisa que via através de seus olhos sonhadores, um elo invisível bem no íntimo de nossas almas. Segurei sua mão na minha, lendo em seu rosto que todos os meus pensamentos e emoções chegavam até seu espírito receptivo. A morte ao meu lado não a atemorizava e quanto a mim esse pensamento me fazia o coração palpitar.
Mas isso não deveria suceder. Pensar-se-ia que nossos invólucros de vidro impediriam a penetração de todo o som do exterior, mas a verdade é que certas vibrações particulares atravessavam-nos facilmente, ou pelo seu choque contra os mesmos despertavam vibrações análogas no seu interior. Ouvi um retumbo grave e vibrante como o de um gongo distante. Não sabia o que poderia significar, mas minha companheira pareceu compreender. Segurando sempre a minha mão ela se levantou de nosso abrigo, e, após ficar alguns momentos à escuta, curvou-se e pôs-se a caminhar contra a torrente. Era uma luta contra a morte aquela, pois a cada momento a opressão que sentia no peito tornava-se mais insuportável. Vi seu rosto amado olhando ansiosamente para o meu e cambaleando pus-me a caminho na direção que ela me indicava. Sua aparência e seus movimentos mostravam-me que sua reserva de oxigênio estava menos rarefeita que a minha. Continuei caminhando enquando a Natureza o permitiu, mas subitamente tudo pareceu girar ao meu redor. Estendi os braços e caí sem sentidos sobre o fundo fofo do oceano.
Quando voltei a mim encontrava-me no meu próprio leito, no interior do Palácio Atlante. O velho sacerdote vestido de amarelo se achava ao meu lado, com um frasco de um estimulante qualquer na mão. Maracot e Scanlan estavam curvados sobre mim com uma expressão inquieta nos rostos e Mona se achava ajoelhada aos pés da cama, com as feições exprimindo terna ansiedade. Parece que a corajosa moça se tinha dirigido o mais depressa que pôde para a porta do refúgio, na qual era costume nessas ocasiões bater um grande gongo para orientar algum companheiro que se houvesse extraviado. Lá, ela explicara minha situação, tendo levado até onde me achava a expedição de salvação, da qual faziam parte meus dois companheiros, que me haviam trazido carregado. Tudo o que eu possa fazer nesta vida será na realidade Mona que o fará, pois minha vida é uma dádiva sua.
Agora que por um milagre ela veio comigo para o mundo de cima, o mundo humano que o céu recobre, é estranho refletir sobre o fato de que meu amor era tal que eu estava disposto com todas as veras da minha alma a permanecer para sempre nas profundezas oceânicas, pelo menos enquanto ela me amasse. Durante muito tempo não pude compreender aquele vínculo fortíssimo que nos unia e que eu podia ver que era sentido tão fortemente por ela quanto por mim. Foi Manda, seu pai quem me deu a sua explicação, que era tão inesperada quanto satisfatória.
Ao perceber nosso caso de amor, ele se limitara a sorrir com o ar indulgente e benévolo de alguém que vê realizar-se aquilo que já previra. Mas um dia ele me chamou e levou-me ao seu próprio quarto, onde colocara aquela tela prateada que refletia o pensamento. Nunca, enquanto estiver vivo, poderei esquecer o que ele nos mostrou a mim e a ela. Sentados lado a lado, com as mãos unidas, assistíamos arrebatados àquele suceder-se de quadros que passava diante de nossos olhos, formados e projetados graças àquela memória racial do passado que os atlantes possuem.
Apareceu uma península eriçada de rochedos, avançando por um lindo oceano azul. É bem possível que eu não tenha dito antes que nestes refletores do pensamento a cor é reproduzida tão bem quanto a forma. Neste promontório havia uma grande casa de arquitetura extravagante, vasta e bela, com seu teto vermelho e suas paredes brancas. Um pequeno bosque de palmeiras a cercava. Neste bosque parecia haver um acampamento, pois entrevíamos por entre as árvores o branco do pano das tendas e aqui e além o brilho das armas de alguma sentinela montando guarda. Fora deste bosque caminhava um homem de meia idade, vestido com uma armadura de malhas e com um pequeno e leve escudo redondo no braço. Carregava alguma coisa na outra mão, mas eu não podia distinguir se seria uma espada ou um dardo. Certa ocasião voltou o rosto para nós e vi imediatamente que era da mesma raça que os atlantes em cujo meio eu estava. Podia realmente ter sido o irmão gêmeo de Manda, tanto se parecia com ele, mas suas feições eram duras e ameaçadoras — a de um homem brutal, mas que é brutal não por ignorância, mas por sua própria natureza. A crueldade unida à inteligência constituem a mais perigosa de todas as combinações. Nessa testa alta e nesse rosto sardônico e de barba longa sentia-se a verdadeira essência do mal. Se esta era realmente alguma encarnação anterior de Manda — e este por seus gestos, parecia querer significar-nos que sim — então ele se elevara muito em alma, se não em espírito, desde essa época.
Ao se aproximar da casa vimos uma jovem sair ao seu encontro. Estava vestida à moda das gregas antigas, com uma longa túnica flutuante, a vestimenta mais simples e todavia a mais bela e majestosa que a mulher já usou. Suas maneiras ao se aproximar dele eram cheias de submissão e reverência — as maneiras de uma filha obediente dirigindo-se a seu pai. Ele contudo repeliu-a brutalmente, levantando a mão para bater-lhe. Ela recuou, mas ao fazê-lo o sol caiu em cheio sobre seu rosto belo e banhado de lágrimas e eu vi então que era a minha Mona.
A tela prateada embaciou-se e dali a um instante aparecia outra cena. Era uma enseada cercada de rochas que eu sentia pertencer àquela mesma península que já vira. Ao fundo via-se um bote de estranho formato, de extremos elevados e pontudos. Era noite, mas a lua rasgava uma esteira de prata nas águas. As estrelas familiares, as mesmas para os atlantes que para nós, luziam no céu. Lenta e cautamente o.bote se aproximava. Conduziam-no dois remadores e à proa ia um homem envolto num manto negro. Já quase na praia ele levantou a cabeça perscrutando ansiosamente os arredores. Vi seu rosto pálido e grave à luz clara do luar. Não foi necessária a nervosa pressão dos dedos de Mona sobre minha mão nem a exclamação de Manda para explicar-me aquele estranho estremeção que me percorreu o corpo ao vê-lo. Aquele homem era eu próprio.
Sim, eu, Cirus Headlei, atualmente de Nova York e Oxford; eu, o mais acabado produto da cultura moderna, havia outrora vivido no seio desta antiga e poderosa civilização. Compreendia agora porque numerosos dos símbolos e hieróglifos que vira ao meu redor me haviam dado uma vaga impressão de familiaridade. Numerosas vezes me sentira como um homem que se esforça por avivar reminiscências confusas, sentindo que está às portas de uma grande descoberta, que, embora suspeite estar próxima, sempre lhe escapa. Agora também compreendia aquele profundo abalo que sentira quando meus olhos haviam encontrado os de Mona. Viera das profundezas do meu subconsciente, onde ainda dormiam as recordações de doze mil anos.
O bote acabava de tocar a praia e das moitas acima surgira um vulto alvo. Meus braços se estenderam para recebê-la. Após um rápido abraço levara-a para o bote. Mas repentinamente houve um alarma. Com gestos frenéticos eu ordenava aos remadores que afastassem a embarcação. Mas era tarde. Homens se precipitaram de todas as moitas em volta. Mãos vigorosas empolgaram o barco. Em vão tentava repeli-los. Uma acha luziu no ar e abateu-se sobre minha cabeça. Caí de bruços, morto, sobre ela, banhando seu vestido branco com o meu sangue. Vi-a gritando de desespero, de olhar esgazeado e rosto convulso e seu pai arrancando-a pelos longos cabelos negros de debaixo do meu corpo. E tudo se tornou confuso.
Novamente se animou a tela prateada. Era o interior da casa de refúgio que fora construída pelo previdente atlante como um abrigo para o dia da condenação — a mesma em que nos encontrávamos agora. Vi seus moradores reunidos cheios de terror no momento da catástrofe. Avistei aí minha Mona novamente e também seu pai, que havia aprendido caminhos melhores e mais sábios de modo a ser agora incluído entre aqueles que deveriam ser salvos. Vimos o grande salão adernando para um e outro lado como um navio numa tempestade e os refugiados, cheios de terror, agarrando-se aos pilares ou caindo no chão. Em seguida vimos todo o edifício afundar, descendo através das águas. Novamente tudo desapareceu e Manda voltou-se sorrindo para mostrar que estava terminada a exibição.
Sim, todos nós, Manda, Mona e eu, já havíamos vivido antes e talvez viveremos ainda uma longa cadeia de vidas. Eu havia morrido no mundo que ficava acima das águas e por isso minhas reencarnações se haviam realizado aí. Manda e Mona haviam morrido sob as águas e assim fora aí que se desenrolara seu destino cósmico. Havíamos levantado por alguns momentos um ângulo do grande véu negro da Natureza e tido um vislumbre passageiro da verdade entre os mistérios que nos cercam. Cada vida é apenas um capítulo numa história que Deus arquitetou. Não podereis julgar de sua sabedoria ou de sua justiça senão quando olhardes para trás nalgum dia supremo, alcantilado nalgum pináculo de sabedoria, e virdes finalmente de um modo claro as resultantes da ação complexa das causas e efeitos através do Tempo.
Talvez tenha sido esta minha recente e deliciosa amizade que nos tenha salvo a todos, quando pouco mais tarde surgiu entre nós e a comunidade com que habitávamos a única questão séria que tivemos. Poderíamos ter-nos saído mal se um assunto de muito maior monta não tivesse vindo absorver a atenção de todos e elevar-nos enormemente em seu conceito. Foi mais ou menos assim:
Uma manhã — se tal termo se pode aplicar quando só distinguíamos as diferentes partes do dia pelas ocupações em que as empregávamos — o professor e eu achávamo-nos sentados em nosso grande quarto comum. Ele transformara um recanto do mesmo em laboratório e achava-se absorvido na dissecação de um gastrostomus que havia pescado com sua rede no dia anterior. Sobre sua mesa achava-se espalhado grande número de anfípodes e copépodes, juntamente com espécimes dos gêneros Valella, Ianthina e Physalia e uma centena de outros bichos, cujo cheiro estava longe de ser tão atraente quanto seu aspecto. Achava-me sentado perto dele, a estudar uma gramática atlante, pois nossos amigos possuíam livros em abundância curiosamente escritos da direita para a esquerda sobre um material que supus a princípio fosse pergaminho mas que vi mais tarde ser fabricado de bexigas natatórias de peixes, comprimidas e tornadas inalteráveis. Tinha resolvido apoderar-me da chave que nos proporcionaria todos os conhecimentos neles contidos e por isso estava dedicando grande parte do meu tempo ao estudo do alfabeto e elementos de sua linguagem.
Subitamente, porém, nossas tranqüilas ocupações foram rudemente interrompidas por uma extravagante procissão que irrompeu pelo nosso quarto. Primeiro apareceu Bill Scanlan muito vermelho e agitado, a brandir um dos braços, enquanto com o outro — vimos cheios de espanto — segurava uma criança rechonchuda e chorosa. Atrás dele vinha Berbrix, o mecânico atlante que ajudara Scanlan a construir o receptor de rádio. Era um homem robusto e jovial nas circunstâncias normais, mas agora seu rosto grande e gordo se achava transtornado pela aflição. Seguindo-os vinha uma mulher cujos cabelos louros e olhos azuis mostravam que não era atlante, mas pertencia à raça subordinada que supúnhamos descendesse dos antigos gregos.
— Olhe, patrão, disse o agitado Scanlan, meu amigo Berbrix é uma boa pessoa e ele com esta mulher com quem casou estão passando um mau bocado. Parece que a raça dela aqui é como a dos negros no Sul dos Estados Unidos e ele precisou falar muito para convencê-la a casar-se com ele; mas com isso acho que não temos nada que ver.
— É lógico que não, repliquei. Que bicho te mordeu, Scanlan?
— Foi o seguinte, patrão. Desse casamento nasceu uma criança, mas parece que essa gente não gosta de um produto dessa espécie, e os sacerdotes querem por isso sacrificá-la àquela imagem lá debaixo. Aquele chefe espichela já a ia levando quando Berbrix a arrancou das suas mãos e eu o mandei ao chão com um soco no ouvido. Agora todo o bando está atrás de nós e…
Scanlan não prosseguiu em sua narração, pois repentinamente ouvimos alarido e ruído de pés no corredor, nossa porta foi escancarada e vários dos servidores do templo, vestidos de amarelo, precipitaram-se para o interior do quarto. Atrás deles, feroz e austero, vinha o portentoso sumo-sacerdote de nariz adunco. Fez um sinal com a mão e seus servos precipitaram-se para agarrar a criança. Mas pararam ao ver Scanlan atirá-la entre os espécimes de animais marinhos da mesa que ficava atrás dele e pegar num bastão com que enfrentou os atacantes. Eles haviam desembainhado suas facas, por isso eu também corri com um bastão em auxílio de Scanlan, enquanto Berbrix fazia o mesmo. Nosso aspecto era tão ameaçador que os servos do templo recuaram e houve um momento de tréguas.
— Sr. Headlei, exclamou Scanlan o senhor que fala um pouco da língua deles queira dizer-lhes que não arranjarão nada aqui. Faça o favor de lhes dizer que hoje não se entregam crianças. Diga-lhes ainda que se não saírem já, haverá um tempo quente como nunca viram. Muito bem! Era isso o que você estava procurando! Agora deve estar satisfeito!
Estas últimas palavras de Scanlan eram motivadas pelo fato de o Dr. Maracot haver inesperadamente enterrado seu bisturi de dissecações no braço de um dos servidores do templo, que havia dado a volta por trás de nós e levantara sua faca para ferir Scanlan. O homem deu um grito e cambaleou de medo e dor sem saber para onde fugir, e seus companheiros se prepararam para uma investida, incitados pelo velho sacerdote. Só Deus sabe o que teria sucedido se Manda e Mona não tivessem entrado naquele momento. Aquele olhou cheio de espanto a cena que se deparava a seus olhos e fez ao sumo-sacerdote algumas rápidas perguntas. Mona se dirigiu para o meu lado e com uma feliz inspiração eu tomei a criança e coloquei-a em seus braços, onde ela se acomodou, serenando seus vagidos.
A fronte de Manda se nublara e via-se que ele se achava profundamente embaraçado para resolver aquele caso. Mandou o sacerdote com seus satélites de volta para o templo e entrou em uma longa explicação da qual apenas parte pude compreender e transmitir aos meus companheiros.
— Ele diz que precisam entregar a criança, disse eu a Scanlan.
— Entregar a criança! Não senhor. Isso é que não!
— Esta senhora se encarregará da mãe e do filho.
— Isso já é outro caso. Se a Senhorita Mona toma conta deles ficarei satisfeito. Mas se esse sacerdote cara de coruja…
— Não, ele não terá interferência nenhuma. A questão será entregue ao Conselho. É um caso muito sério, pois, pelo que Manda me disse, compreendi que o sacerdote está nos seus direitos e que é um velho costume estabelecido na nação. Diz ele que não poderiam depois distinguir uma raça da outra se houvesse entre ambas toda uma série de intermediários. Se nascem crianças nessas condições elas devem morrer. É essa a lei.
— Sim, mas esta criança não morrerá.
— Espero que não. Ele disse que faria tudo o que pudesse junto ao Conselho. Mas até que este se reúna decorrerá uma ou duas semanas. Desse modo ela está por enquanto em segurança e quem sabe o que poderá suceder neste intervalo de tempo!
Sim, quem poderia prever o que sucederia? Quem poderia sequer sonhá-lo? E é disso que trataremos no próximo capítulo das nossas aventuras.
Já disse que, a pequena distância da morada subterrânea dos atlantes, construída propositalmente para resistir ao cataclismo que destruíra sua terra natal, encontravam-se as ruínas da grande cidade que seus antepassados haviam habitado. Descrevi também a visita que fizemos a esse lugar com as campanas de vidrina carregadas de oxigênio sobre as cabeças, e tentei reproduzir a profunda emoção que experimentamos ao percorrê-las. Não há palavras que possam exprimir a tremenda impressão produzida em nossos espíritos por aquelas colossais ruínas, com seus pilares esculpidos e gigantescos edifícios, perfilados silenciosamente à luz fosforescente das profundezas batibianas, sem nenhum movimento a animá-los a não ser o lento balouço das algas gigantes às correntes marinhas profundas ou os vultos rápidos de grandes peixes que desfechavam através das portas escancaradas ou dos salões desmantelados. Era um de nossos passeios favoritos, e guiados pelo nosso amigo Manda passamos muitas horas agradáveis a examinar sua estranha arquitetura e todos os outros restos daquela civilização desaparecida, que, a se julgar pelos vestígios materiais que deixara, parecia haver-se adiantado muito mais que a nossa.
Falei de vestígios materiais, mas logo tivemos a prova de que em cultura espiritual um vasto abismo os separava de nós. A lição que podemos tirar de sua ascensão e sua queda é que o maior mal que pode sobrevir a uma nação é a inteligência dominar o sentimento. Foi isto que destruiu esta velha civilização e que ainda poderá ser a ruína da nossa. Havíamos observado que numa parte da antiga cidade havia um grande edifício que se deveria encontrar situado sobre uma colina, pois ainda se achava consideràvelmente acima do nível dos outros. Uma longa série de grandes degraus de mármore negro conduzia até ele e o mesmo material se via utilizado na maior parte do edifício, sendo porém que se achava agora quase totalmente mascarado por uma horrível profusão de fungos amarelos, que pendiam como postas pútridas de carne de todas as cornijas e saliências. Acima da porta principal, esculpida também em mármore negro, via-se uma medonha cabeça donde se irradiavam serpentes, como a cabeça de Medusa, e mesma figura se reproduzia aqui e além sobre as paredes. Várias vezes havíamos querido explorar este sinistro edifício, mas em todas elas Manda mostrara a mais viva agitação e por gestos desesperados implorara que nos afastássemos. Era claro para nós que enquanto ele estivesse em nossa companhia nunca permitiria que o fizéssemos, mas uma grande curiosidade nos impelia a desvendar o segredo daquele palácio misterioso. Uma manhã eu e Bill Scanlan tivemos uma conversa sobre o assunto.
— Olhe Bo, disse-me ele, há aí alguma coisa que Manda não quer que vejamos, mas quanto mais ele no-la oculta mais vontade tenho de saber o que é. Acho que nós dois não precisamos mais de guias. Creio que poderemos vestir nossas campanas de vidro e sair como qualquer outro cidadão. Vamos até lá explorar a casa.
— Tem razão, disse eu. Vê nisso algum inconveniente, doutor? perguntei a Maracot, que havia entrado no quarto. Quererá vir conosco também para destrinçarmos o mistério do Palácio do Mármore Negro?
— É muito possível que seja também o Palácio da Magia Negra, disse ele. Já ouviu falar no Senhor do Torvo Semblante?
Confessei que não. Não sei se já terei dito antes que o professor era uma autoridade mundial em assuntos de Religião Comparada e antigas crenças primitivas. Mesmo a longínqua Atlântida não escapara totalmente aos seus estudos.
— Nossos conhecimentos a este respeito nos vêm principalmente por intermédio do Egito, disse ele. Aquilo que os sacerdotes do Templo de Sais disseram a Sólon é que constitui o núcleo sólido ao redor do qual tudo o mais, parte realidade e parte ficção, se veio condensar.
— E que foi que esses sacerdotes disseram de interessante? perguntou Scanlan.
— Muitas coisas. Entre outras referiram-se à lenda do Senhor do Torvo Semblante. Não me posso impedir de pensar que possa ter sido o morador do Palácio do Mármore Negro. Alguns dizem que havia vários Senhores do Torvo Semblante mas Sólon apenas se refere a um único.
— E que espécie de sujeito era esse? perguntou Scanlan.
— Pelo que dizem deveria ser um ente sobre-humano, tanto pelos poderes de que dispunha como por sua perversidade. Diziam ter sido mesmo por sua causa e por causa da corrupção de costumes que ele havia provocado entre o povo que todo o país fora destruído.
— Como Sodoma e Gomorra.
— Exatamente. Parecia existir um ponto que, atingido, tornaria a situação incomportável. A paciência da Natureza, como que se esgotaria, apresentando-se-lhe como único recurso a destruição de tudo para recomeçar de novo. Esta criatura que mal se pode chamar de humana dedicara-se a artes diabólicas e adquirira poderes mágicos do maior alcance, que utilizava para praticar o mal. É essa a lenda do Senhor do Torvo Semblante. Isso explicaria porque essa casa é ainda um objeto de horror para este pobre povo e porque nos impedem de aproximarmo-nos dela.
— O que me torna ainda mais ansioso por fazê-lo, exclamei.
— E a mim também, Bo, acrescentou Bill.
— Confesso que também me interessaria examiná-la, disse o professor. Creio que nossos bons hóspedes não se zangarão se fizermos uma pequena expedição por nossa Conta, desde que sua superstição lhes torna difícil acompanhar-nos. Aproveitaremos a primeira oportunidade para isso.
Esta oportunidade demorou um pouco a apresentar-se, pois nossa pequena comunidade era regida por uma organização tão rígida e perfeita que poucas ocasiões se davam para o exercício da iniciativa individual. Aconteceu todavia que uma manhã houve uma festa religiosa que os fez reunirem-se e absorveu toda a sua atenção. A oportunidade era boa demais para que a perdêssemos e tendo por isso assegurado aos dois porteiros encarregados de manobrar as grandes bombas da câmara de entrada que tudo estava em ordem, encontrávamo-nos dali a pouco sobre o leito do oceano, a caminho da velha cidade. Caminha-se com dificuldade através do meio denso que é a água salgada, e mesmo uma curta jornada é cansativa, mas no fim de uma hora já nos achávamos em frente do vasto edifício negro que excitara nossa curiosidade. Sem nenhum guia amigo para nos deter, nem pressentimento de perigo, subimos a escadaria de mármore e passamos por entre as ombreiras esculpidas daquele palácio do mal.
Estava muito melhor conservado que os outros edifícios da velha cidade — tão conservado mesmo que seu arcabouço de pedra estava ainda perfeito e apenas o mobiliário e ornamentos é que haviam há muito desaparecido. A Natureza, porém, trouxera outros adornos em substituição, e dos mais horríveis. Era uma habitação escura e sombria, mas mesmo naquela semi-obscuridade entreviam-se as formas repulsivas de pólipos monstruosos e peixes extravagantes e grotescos, como visões de um pesadelo. Lembro-me em especial de uma enorme espécie de lesma do mar de cor púrpura, que se arrastava em grande número por toda parte e de grandes e negros peixes chatos que jaziam como almofadas sobre o chão, com longos tentáculos ondulantes de extremidades rubras movendo-se acima deles na água. Precisávamos avançar com cuidado, pois todo o edifício estava povoado com estes entes horrendos, que poderiam muito bem mostrar-se tão peçonhentos como pareciam.
Havia corredores ricamente ornamentados, com pequenos quartos ao lado e o centro do edifício era ocupado por um salão magnífico, que nos seus dias de grandeza deveria ter sido um dos mais admiráveis que a mão do homem já construiu. Aquela frouxa claridade não podíamos ver o teto nem as paredes em conjunto. Mas passeando por eles os túneis de luz de nossas lâmpadas, pudemos apreciar suas dimensões gigantescas e as maravilhosas decorações das paredes. Estas decorações consistiam em estátuas e ornamentos esculpidos com a perfeição mais acabada, mas horríveis e revoltantes em suas representações. Tudo o que o espírito humano mais depravado poderia conceber de crueldade sádica e luxúria bestial, estava representado naquelas paredes. Através das sombras entrevíamos ao nosso redor, para todos os lados, imagens monstruosas e repulsivas. Se jamais o demônio teve um templo erigido em sua honra, seria aquele. A figura do próprio demônio lá se achava representada. Numa extremidade do salão, sob um palio de um metal descorado que bem poderia ter sido ouro e colocada sobre um alto trono de mármore vermelho, achava-se sentada uma divindade temerosa, a mais perfeita personificação do mal, feroz, escarnecedora e implacável, modelada nas mesmas linhas que a de Baal que víramos na colônia dos atlantes, mas infinitamente mais pavorosa e repulsiva. Havia como que um fascínio na energia portentosa daquele semblante terrível. Achávamo-nos à sua frente com a luz de nossas lâmpadas projetadas sobre ela e a contemplá-la absortos, quando a mais espantosa e incrível das coisas veio quebrar o fio de nossas reflexões. De trás de nós veio o som de uma risada humana, estrepitosa e sardônica.
Como já expliquei, nossas cabeças se achavam encerradas em campanas de vidro que não só impediam a entrada do som, como também a transmissão da voz de uma pessoa que a usasse. E entretanto aquele riso escarnecedor chegava claramente aos ouvidos de todos nós. Voltamo-nos todos instantaneamente e ficamos paralisados de espanto ante o espetáculo que se nos deparou.
Recostado contra um dos pilares do vasto salão encontrava-se um homem, com os braços cruzados sobre o peito e os olhos malévolos fixados ameaçadoramente sobre nós. Eu disse que era um homem, mas era diferente de todos os homens que já vira, e o fato de poder respirar e falar em condições em que nenhum homem poderia fazê-lo e de poder transmitir sua voz quando nenhum homem o conseguiria, mostrava-nos que ele tinha em si algo que o tornava muito diferente de nós. Exteriormente era uma figura majestosa, tendo no mínimo sete pés de altura, de linhas atléticas, o que se via melhor por usar ele uma vestimenta que lhe moldava perfeitamente o corpo e que parecia feita de couro preto e luzidio. Seu rosto era o de uma estátua de bronze, uma estátua esculpida por mão de mestre a fim de representar toda a energia e ao mesmo tempo todo o mal que se poderiam imprimir numa fisionomia humana. Seu rosto não exprimia orgulho nem sensualismo, pois tais caracteres indicam fraquezas e não se divisava naquele o menor traço disso. Muito pelo contrário, exprimia uma energia sobre-humana com seus traços firmes, seu nariz de águia, suas sobrancelhas escuras e cerdosas e seus flamejantes olhos negros, que cintilavam e luziam como animados de um fogo interior. Eram estes olhos implacáveis e malignos e sua boca bela mas cruel com seus lábios finos e retos, que lhe davam aquela expressão sinistra no rosto. Sentia-se ao olhar para ele que apesar de sua aparência majestosa era impregnado de maldade até a medula dos ossos. Seu olhar era uma ameaça, seu sorriso um escárnio, sua risada um sarcasmo.
— Muito bem, senhores — disse ele em excelente inglês, numa voz que soava tão claramente como se nos achássemos na terra — já lhes sucedeu uma notável aventura em seu passado e bem lhes poderia acontecer uma outra ainda mais digna de nota no futuro, se bem que eu me possa dar ao agradável trabalho de cortar tudo pela raiz. Receio que esta nossa conversação tenha de possuir um caráter unilateral, mas como sou perfeitamente capaz de ler os seus pensamentos e sei de tudo a respeito de suas pessoas, não precisam temer nenhum mal-entendido. Têm ainda muitas, muitíssimas coisas a aprender.
Olhamos uns para os outros cheios do maior espanto. E o que era mais desagradável era estarmos impedidos de trocar idéias sobre as emoções que tudo isto despertava em nós. Ouvimos novamente sua risada áspera.
— Sim, é realmente bem desagradável. Mas poderão conversar quando voltarem, pois quero que voltem para levar uma mensagem minha. Se não fosse essa mensagem, creio bem que esta visita à minha casa seria o fim de todos. Mas antes de mais nada tenho qualquer coisa a dizer-lhes. Dirigir-me-ei à sua pessoa, Dr. Maracot, como sendo o mais velho e presumivelmente o mais sensato do grupo, se bem que não deva ser considerado muito sensato quem se atreve a fazer uma excursão como esta. Todos me ouvem perfeitamente, não é verdade? Muito bem, um simples movimento de cabeça é quanto me basta.
Em primeiro lugar, bem sabem quem sou. Sei que só me descobriram recentemente. Ninguém pode falar a meu respeito nem pensar em mim sem que eu o saiba imediatamente. Ninguém pode vir à minha antiga casa, meu sacrário mais íntimo, sem que eu me sinta no mesmo instante chamado. É por isso que aquela pobre gente a evita e queria que também a evitassem. Teriam realmente agido muito melhor se seguissem os seus conselhos. Os senhores me trouxeram aqui, e quando me chamam não me afasto assim tão prontamente.
Seu espírito, com o pequeno grão de ciência terrena que possui, atormenta-se inutilmente com os problemas que minha pessoa apresenta. Como posso viver aqui sem oxigênio? Eu não vivo aqui. Vivo no grande mundo dos homens sob a luz do sol. Só venho aqui quando sou chamado, como os senhores me chamaram. Sou uma criatura que apenas respira éter. Aqui existe tanto éter como no cume de uma montanha. Mesmo algumas pessoas da sua espécie, aliás, podem viver sem o ar. O cataléptico pode passar meses sem respirar. O mesmo sucede comigo, mas como vê, permaneço vivo e capaz de atividade.
Quer agora saber como me podem ouvir. Pois a verdadeira base da radiotelefonia não é a transformação de vibrações do éter em vibrações do ar? Assim também é que consigo fazer minhas palavras de articulação etérea atingir os seus ouvidos através do ar que enche esses seus grosseiros aparelhos.
O meu inglês? Espero realmente que o achem razoavelmente bom. Vivi algum tempo na terra — oh, bastante tempo! Quanto? Será este o décimo primeiro milênio ou o décimo segundo? O último, suponho. Tive tempo de aprender todas as línguas humanas. O meu inglês não é mais perfeito que o resto.
Terei resolvido algumas de suas dúvidas? Muito bem. Se eu não os posso ouvir, posso vê-los. Mas agora tenho alguma coisa mais séria a dizer.
Sou eu Baal-seepa. Sou eu o Senhor do Torvo Semblante. Sou eu aquele que penetrou tão fundo os mais íntimos segredos da Natureza que pôde desafiar a própria morte. Arranjei as coisas de modo tal a não poder morrer nem mesmo se o quisesse. Para que eu morra é necessário que surja uma vontade mais forte que a minha. Mortais, nunca peçam para ser libertados da morte. Esta pode parecer terrível, mas a vida eterna o é infinitamente mais. Ir de um para outro lado vendo passar a infinita procissão da humanidade! Sentarmo-nos a um lado da história e vê-la desenrolar-se, a caminhar sempre avante, deixando-nos para trás! É de se admirar que meu coração esteja cheio de rancor e amargura e que eu maldiga a todos e a tudo? Faço-lhes todo o mal que posso. Por que não?
Pergunta-se como o consigo. Disponho de poderes que não'são pequenos. Sei manobrar os espíritos dos homens. Sou o senhor das multidões. Onde quer que se tenha planejado o mal, lá estive eu. Encontrava-me com os hunos quando reduziram metade da Europa a ruínas. Encontrava-me com os sarracenos quando em nome da religião passavam a fio de espada os que discordavam de suas crenças. Achava-me presente aos massacres da noite de São Bartolomeu. Encontrava-me atrás do tráfico de escravos. Foi por insinuação minha que se queimaram dez mil velhas inofensivas que os tolos chamavam feiticeiras. Era eu o alto homem de tez escura que conduzia as multidões em Paris, quando o sangue inundava as ruas. Tempos inestimáveis aqueles! Mas houve ainda melhores ultimamente na Rússia. Foi donde eu vim agora. Havia-me quase esquecido desta colônia de ratos marinhos que, entocados na lama, conservam ainda algumas das artes e lendas daquela grande terra onde a vida floresceu com um viço nunca mais atingido. Foram os senhores que me fizeram lembrar deles, pois esta minha velha casa ainda está unida por vibrações pessoais, de que sua ciência nada sabe ainda, ao homem que a construiu e amou. Senti que estranhos haviam penetrado nela. Averigüei quem fossem e aqui estou. Desde que já «estou» aqui — e é a primeira vez em mil anos — isso me lembrou este povo. Acho que já viveram bastante. Já é tempo de se irem. Eles devem sua vida ao poder de um ente que me desafiou durante toda a sua existência e que edificou um prédio para refúgio contra o cataclismo que destruiu a tudo, menos a seu povo e a mim. Sua sabedoria os salvou e meu poderio, salvou-me. Mas agora meu poderio esmagará aqueles que ele salvou e a história ficará completa.
Enfiou a mão no peito e retirou um pergaminho com. caracteres escritos.
— Entregará isto ao chefe dos ratos de água, disse ele. Lamento, cavalheiros, que os senhores tenham que partilhar sua sorte, mas desde que são a causa primeira de sua desgraça, isso não passa de simples justiça. Mais tarde tornarei a vê-los. Neste intervalo recomendo-lhes um estudo dessas pinturas e esculturas, que lhes darão uma idéia da altura a que eu elevei a Atlântida durante os dias que a dirigi. Aqui encontrarão alguns aspectos das modas e costumes do povo, quando sob a minha influência. A vida era muito mais variada, colorida e pitoresca. Nos dias prosaicos de hoje chamá-la-iam uma orgia perversa. Dêem-lhe o nome que quiserem, eu a instaurei, regozijei-me com ela e não tenho remorsos. Se o meu tempo voltasse de novo, faria o que fiz e mesmo mais ainda, exceto apenas a realização deste plano fatal de viver eternamente. Warda, que eu maldigo e que deveria ter matado antes que se tornasse bastante forte para voltar o povo contra mim, foi mais sensato do que eu neste assunto. Ele ainda visita a terra, mas como um simples espírito e não como homem. E agora eu me vou. Foi a curiosidade que os trouxe aqui, meus amigos, e ouso esperar que a tenham satisfeito.
E vimo-lo então desaparecer. Sim, sua figura desvaneceu-se diante de nossos olhos. Isto não sucedeu num instante. Afastara-se do pilar contra o qual estivera encostado. Os contornos de seu vulto esplêndido e majestoso pareceram diluir-se. Apagou-se o brilho de seu olhar e suas feições tornaram-se indistintas. Dali a um momento achava-se reduzido a uma nuvem negra e revoluteante que subiu através da água estagnada do horrendo salão, desaparecendo. Só ficamos ali os três, a olhar estupefatos uns para os outros, assombrados com as estranhas possibilidades da vida.
Não ficamos mais tempo naquele horrível palácio. Não era um lugar em que se pudesse estar em segurança. Havia já tirado uma daquelas nojentas lesmas de cor púrpura do ombro de Bill Scanlan, e eu próprio fora dolorosamente atingido na mão pelo jacto de veneno que me lançara um grande lamelibrânquio amarelo. Ao sairmos dali com passos mal firmes tive um último vislumbre daqueles horríveis quadros em relevo, trabalhados nas paredes pelas mãos do próprio demônio e precipitamo-nos quase correndo pelo escuro corredor, maldizendo o dia em que havíamos sido bastante insensatos para entrar naquela casa. Foi uma verdadeira alegria para nós sentirmo-nos novamente banhados pela luz fosforescente da planície batibiana e ver aquelas claras extensões de águas transparentes ao nosso redor. Dali a uma hora achávamo-nos novamente de volta ao refúgio. Depois de removermos nossos capacetes, reunimo-nos em nosso quarto para deliberarmos sobre o assunto. O professor e eu nos achávamos abalados demais para conseguir exprimir nossos pensamentos. Só a irreprimível vitalidade de Scanlan é que conseguiu vencer a opressão desse encontro.
— Deus nos guarde! Aquele sujeito parecia ser o diabo-mor saído do inferno.
O Dr. Maracot estava absorvido em seus pensamentos. Em dado momento ele tocou a sineta para chamar nosso criado. «Manda», disse ele. Dali a um minuto nosso amigo se achava no quarto. Maracot entregou-lhe o fatídico bilhete.
Nunca admirei tanto um homem como a Manda naquele momento. Havíamos por nossa injustificável curiosidade trazido sobre ele e seu povo uma tremenda ameaça de destruição — nós, os estranhos que eles haviam salvo quando já tudo lhes parecia irremediavelmente perdido. Todavia, apesar da palidez espectral que lhe cobriu o rosto ao lê-la, não se viu o menor sinal de censura nos seus tristes olhos castanhos quando os voltou para nós. Abanou a cabeça e via-se o desespero em todos os seus gestos. «Baal-seepa! Baal-seepa!» exclamou ele, e apertou as mãos convulsiva-mente contra os olhos, como a repelir uma horrível visão. Girou pelo quarto como um homem enlouquecido de desespero e finalmente precipitou-se para fora para ler a mensagem à comunidade. Ouvimos poucos minutos mais tarde o retumbar do grande sino que os convocava a todos para uma reunião no Salão Central.
— Devemos ir? perguntei.
O Dr. Maracot abanou a cabeça.
— Que poderíamos fazer? Que probabilidades podem eles ter contra um ente que dispõe dos poderes de um demônio?
— Seria o mesmo que um grupo de coelhos a lutar contra uma doninha, disse Scanlan. Mas o certo é que toca a nós achar um meio para sair desta enrascada. Não é bonito irmos acordar o demônio para o lançar sobre o povo que nos salvou.
— O que sugeres? perguntei ansiosamente, pois entrevia atrás de todo esse palavreado o seu fértil e eterno espírito prático.
— Acho que talvez ele não seja tão invulnerável como pensa. Pode bem ser que com a idade ele se tenha deteriorado um pouco, pois a acreditar em sua palavra já é bem velhozinho.
— Julga então que o poderemos atacar?
— Loucura! exclamou Maracot.
Scanlan dirigiu-se ao seu armário. Quando se voltou tinha na mão um grande revólver de seis tiros.
— Que acham disto? disse ele. Trouxe-o quando estivemos no navio naufragado. Pensei que talvez se tornasse útil mais tarde. Tenho aqui uns doze cartuchos. Talvez que se eu lhe fizer na carcaça outros tantos buracos, ele deixará escapar alguma coisa de sua magia. Santo Deus! Que é isto!
O revólver cairá ruidosamente no chão e Scanlan se contorcia de dor, segurando com a mão esquerda o punho direito. Terríveis cãibras lhe haviam empolgado o braço e procurando aliviá-lo podíamos sentir seus músculos retesados e duros como as raízes de uma árvore. Um suor agônico escorria pela testa de nosso pobre companheiro. Caiu finalmente sentado sobre o seu leito, abatido e exausto.
— Isto quase acaba comigo, disse ele. Estou esgotado. Sim, obrigado, a dor já passou. Mas eu aprendi minha lição. Não se combate o inferno com revólveres de seis tiros; nem vale a pena tentar. Terei mais cuidado de agora em diante.
— Sim, você recebeu uma severa lição, disse Maracot.
— Acha então o nosso caso desesperado?
— Que poderíamos fazer quando ele, ao que parece, está ciente de cada palavra e de cada um dos nossos atos? Não devemos contudo desesperar. — Durante alguns momentos permaneceu pensativo. — Acho, Scanlan, continuou, que deve ficar aí deitado por algum tempo. Você teve um abalo de que lhe custará um pouco recobrar-se.
— Se houver alguma coisa a fazer, contem comigo, disse nosso companheiro bravamente, se bem que seu rosto transtornado e seus membros trêmulos denotassem o sofrimento que tivera de suportar.
— Não temos nada a fazer, pelo menos no que se refere a ti. Já vimos que é inútil qualquer violência. Deveríamos trabalhar em outro plano — o plano espiritual. Fique aqui também, Headlei. Vou até a sala que me serve de escritório. Talvez que ficando só eu possa ver um pouco mais claro neste assunto.
Tanto Scanlan como eu aprendêramos a depositar uma grande confiança em Maracot. Se algum cérebro humano pudesse resolver nossas dificuldades, seria o seu. Havíamos todavia chegado a um ponto que parecia escapar totalmente à influência das forças humanas. Achávamo-nos tão perplexos como crianças diante de forças que não podem compreender nem controlar. Scanlan caíra em um sono agitado. O que me perguntava ao sentar-me ao lado dele não era como poderíamos escapar e sim que forma assumiria o golpe que nos iria aniquilar e quando cairia sobre nós. Esperava a todo momento ver desabar aquele sólido teto que nos cobria, aluírem-se as paredes e as águas escuras do pélago precipitarem-se sobre aqueles que as haviam desafiado tanto tempo.
Mas subitamente o grande sino recomeçou a repicar. Suas badaladas retumbantes agitavam violentamente os nervos. Pus-me de pé num salto e Scanlan sentou-se no leito. Não era um apelo comum que ressoava através do velho palácio. Aquele repique agitado, tumultuoso e irregular, era um grito de alarma. Todos deveriam vir e imediatamente. Era ameaçador e insistente. «Venham! Venham imediatamente! Deixem tudo e venham!» bradava o sino.
— Olhe, Bo, acho que nos devemos reunir a eles, disse Scanlan. Decerto estão se preparando para enfrentá-lo agora.
— Mas que poderemos fazer?
— Talvez só a nossa presença já lhes dê um pouco mais de ânimo. De qualquer modo, eles não devem pensar que somos desertores. Onde está o doutor?
— Foi ao escritório. Mas tem razão, Scanlan. Devemos ir ter com os outros para mostrar-lhes que estamos prontos a partilhar o seu destino.
— Essa pobre gente parece ter confiança em nós. Pode ser que sua sabedoria seja maior do que a nossa, mas nós parecemos ter mais sangue-frio. Penso que eles se limitaram a conservar o que lhes foi dado, ao passo que nós tivemos que descobrir as coisas por nós mesmos. Se o dilúvio tem de vir mesmo, que venha.
Mas ao nos aproximarmos da porta deparamos com um espetáculo dos mais inesperados. O Dr. Maracot se achava à nossa frente. Mas seria aquele realmente o Dr. Maracot que conhecíamos — este homem senhor de si mesmo, em que a energia e a intrepidez se refletiam em cada traço de suas feições imperiosas? O sábio pacato desaparecera para dar lugar a um super-homem, um grande chefe, uma alma dominadora capaz de flectir o gênero humano aos seus desejos.
— Sim, amigos, pode ser que necessitem de nós. É possível que tudo possa ainda ser remediado. Mas venham imediatamente antes que seja tarde. Explicarei tudo depois — se é que possa haver algum depois para nós. Sim, sim, já estamos indo.
As últimas palavras eram ditas, ao mesmo tempo que acompanhadas por gestos adequados a alguns aterrorizados atlantes que haviam aparecido na porta e nos chamavam ansiosamente por gestos. Várias vezes, como dissera Scanlan, nos havíamos mostrado mais enérgicos e resolutos do que este povo prisioneiro das águas e agora, neste momento de supremo perigo, eles pareciam apegar-se a nós. Pude ouvir um abafado murmúrio de alívio e satisfação ao penetrarmos no salão e tomarmos os lugares reservados para nós na fileira da frente.
Já era tempo de chegarmos, se podíamos realmente levar-lhes algum socorro. O terrível personagem já se achava sobre o tablado, encarando com um sorriso cruel o povo apavorado que se achava à sua frente. A comparação de Scanlan de um bando de coelhos diante de uma doninha voltou-me à memória ao olhá-los. Seguravam-se uns aos outros, cheios de terror, a fitar com os olhos dilatados a temerosa figura que torrejava à sua frente e a implacável face de granito que os contemplava. Nunca me poderei esquecer da impressão que me fizeram aquelas filas semicirculares de rostos convulsos e de olhares que se cravavam apavorados no tablado central. Parecia que ele já proferira a condenação e que toda aquela gente esperava sob a sombra da morte a sua execução. Manda, em atitude de abjeta submissão, suplicava em voz entrecortada compaixão pelo seu povo, mas era visível que as suas palavras apenas serviam para acrescer o prazer do monstro, que o encarava escarnecedoramente. Com algumas palavras ásperas ele o interrompeu levantando a mão direita para o ar, enquanto um alarido de desespero se elevava da assembléia.
E naquele momento, o Dr. Maracot pulou para o tablado. Causava espanto vê-lo. Parecia havê-lo transmudado um milagre. Tinha o porte e a desenvoltura de um jovem e no seu rosto havia uma expressão de domínio e energia como nunca vira em feições humanas. Vimo-lo dirigir-se para o Torvo gigante que o fitava surpreendido.
— Então, homem, que tens a dizer? perguntou ele.
— Tenho isto a dizer, disse Maracot. Chegou a tua hora. Já a ultrapassaste mesmo. Para baixo! Desce imediatamente para o Inferno que já te esperou tanto tempo. És um príncipe das trevas. Vai para onde elas estão.
Os olhos do demônio lançavam sombrios clarões ao responder:
— Quando chegar a minha hora, se esta chegar algum dia, não será dos lábios de um vil mortal que o saberei, disse ele. Que poderes tens para te ousares opor por um momento que seja a um ente que manobra os mais íntimos segredos da Natureza? Eu poderia aniquilar-te no lugar em que estás.
Maracot sustentou sem pestanejar aquele olhar terrível. Pareceu-me que era o do gigante que lhe fugia.
— Infeliz criatura, disse Maracot, sou eu que tenho a vontade e o poder para aniquilar-te onde estás. Já manchaste demasiado o mundo com a tua presença. Foste sempre um pântano pútrido a macular tudo que há de belo e de bom. O coração dos homens sentir-se-á aliviado quando te fores e o sol luzirá com mais brilho.
— Que queres dizer? Quem és? balbuciou o gigante.
— Tu falas de conhecimentos secretos. Deverei dizer-te o que se acha na base dessa sabedoria? É que o bem é sempre mais forte do que o mal da mesma plana. O anjo sempre vencerá o demônio. Encontro-me agora no mesmo nível em que tu tanto tempo estiveste e tenho poderes de conquistador. Eles me foram conferidos. Por isso ordeno-te novamente: Para baixo, já! Desce para o Inferno a que pertences! Para baixo, ordeno-te! Já!
E então ocorreu o milagre. Durante um minuto ou mais — como se poderia avaliar o tempo em tais momentos? — os dois entes, o mortal e o demônio, encararam um ao outro, rígidos como estátuas, olhos nos olhos, ambos com a mesma expressão de inflexível energia no rosto. E subitamente a gigantesca criatura recuou. Com o rosto convulso de furor elevou dois punhos fechados para o ar. «És tu, Warda, tu, maldito! Bem te reconheço! Maldito sejas, Warda! Mil vezes maldito!». Sua voz morreu aos poucos, seu vulto negro tornou-se de contornos indistintos, sua cabeça tombou para o peito, seus joelhos flectiram-se e lentamente caiu, mudando aos poucos de aspecto. A princípio era um abatido ser humano, que se tornou numa massa informe, desfazendo-se subitamente num montão semilíquido de uma matéria negra, pútrida e repulsiva, que manchava o tablado e empestava o ar. Ao mesmo tempo Scanlan e eu precipitamo-nos para a plataforma, pois o Dr. Maracot com um profundo gemido caíra desfalecido para a frente. «Vencemos! Vencemos!» balbuciou ele, e no instante seguinte perdia o conhecimento e tombava semimorto no chão.
Foi assim que a colônia atlante escapou ao perigo mais horrível que a poderia ameaçar e que um ente maléfico foi banido para sempre do mundo. Só dali a alguns dias pôde o Dr. Maracot contar-nos sua história e era ela de tal caráter que se não tivéssemos visto o seu desfecho tê-la-íamos na conta de delírio. Devo dizer que seu poder o havia abandonado depois de passada a ocasião que o solicitara, e que era agora o mesmo pacato homem de ciência que sempre conhecêramos.
— Acontecer isto a mim! exclamou ele. A mim, um materialista, um homem tão embebido de matéria que para mim o invisível não existia! Desmantelaram-se ao meu redor as teorias em que acreditei toda a minha vida.
— Entramos novamente numa outra escola, disse Scanlan. Se algum dia eu voltar para a minha pequena casa da cidade, terei bastante coisa que contar.
— Quanto menos falar tanto melhor para você, a não ser que queira ganhar a fama de ser o maior mentiroso de toda a América, redargüi. Será que eu ou você acreditaríamos nisso tudo se fosse alguém que nos viesse contar?
— É bem possível que não. Mas o senhor fez um trabalho bonito, doutor. Aquela alma negra ganhou o que merecia e o que é melhor é que não voltará mais. Para onde foi, isso é que não sei, mas de qualquer jeito para lá é que eu não quero ir.
— Vou contar-lhes exatamente o que aconteceu, disse o doutor. Lembram-se ainda de que eu os deixei e me retirei para o meu escritório. Tinha poucas esperanças no coração, mas em diversas ocasiões já li bastante coisa a respeito de magia negra e artes ocultas. Sabia já que a branca pode sempre dominar a negra quando pertençam ambas à mesma plana. Ele se achava num nível muito mais forte — não direi mais elevado — do que nós. Nisto é que consistia o mal.
Não via meios de escaparmos. Atirei-me sobre o canapé e orei — eu, o materialista irredutível — orei por socorro. Quando se chega ao extremo do poder humano, que se pode fazer senão estender mãos suplicantes ao invisível que nos cerca? Orei — e minha oração teve uma resposta espantosa.
Senti subitamente que já não me achava só no quarto. À minha frente se achava uma alta figura de tez tão escura como a do ente que combatíamos, mas de fisionomia bondosa e longas barbas veneráveis, que irradiava benevolência e amor. A impressão de força que incutia não era menor que a do outro, mas era a força do bem, a força à frente da qual o mal se desvaneceria como a névoa aos raios do sol. Olhava-me com expressão de imensa bondade e eu limitei-me a fitá-lo surpreendido demais para poder articular qualquer palavra. Qualquer coisa dentro de mim, inspiração ou intuição, dizia-me que era este o espírito daquele atlante grande e sábio que combatera o mal enquanto vivera e que, não podendo impedir a destruição de sua pátria, cuidara de assegurar a sobrevivência dos mais dignos, mesmo tendo que se verem submersos nas profundezas do oceano. E agora este ente assombroso aparecia para impedir a ruína de seu trabalho e a destruição de seus filhos. Com uma abafada exclamação de esperança compreendi tudo isso tão claramente como se ele o tivesse dito. Sempre sorrindo, ele se encaminhou para mim e colocou suas mãos sobre minha cabeça. Era sem dúvida sua própria energia e poder que ele me transmitia. Sentia-os correndo como vivo fogo pelas minhas veias. Nada no mundo me parecia impossível naquele momento. Possuía a vontade e o poder para operar milagres. Naquele instante ouvi o sino tocar a alarma, o que me mostrou que a crise chegara. Ao me levantar do canapé, o espírito, com um sorriso de encorajamento, desvaneceu-se à minha vista. Fui ter então com vocês e o resto já sabem.
— Sua reputação entre eles está feita, disse eu. Mesmo se quisesse ser adorado como um Deus, creio que não encontraria dificuldades.
— O senhor se arranjou bem melhor do que eu, doutor, disse Scanlan, pensativo. Como será que aquele sujeito não adivinhou o que estava fazendo? Ele foi bem pronto em me castigar quando peguei no revólver. E no entanto com o senhor ele não desconfiou de nada.
— Suponho que é porque você agiu no plano material, ao passo que eu me elevei a um plano espiritual, disse Maracot pensativo. Tais coisas nos ensinam a sermos humildes. Somente quando entramos em contato com o mais elevado é que verificamos o nível baixo em que nos achamos entre as numerosas possibilidades da criação. Recebi minha lição. Assim possa minha vida futura mostrar que me aproveitou.
E foi esse o fim de nossa suprema aventura. Pouco tempo depois é que tivemos a idéia de enviar notícias nossas à superfície e mais tarde, por meio de bolas de vidrina cheias de levigênio, subirmos nós mesmos, sendo recolhidos da maneira já narrada. O Dr. Maracot fala atualmente em voltar. Há certos pontos de ictiologia sobre os quais necessita detalhes mais preciosos. Mas Scanlan, ao que soube, casou-se com sua namorada de Filadélfia e foi promovido a chefe de obras de Merribank, não procurando mais aventuras; quanto a mim, as profundezas marinhas já me deram uma preciosa pérola — e nada mais lhes peço.