A Vida, o Universo e Tudo Mais

Douglas Adams


Para Sally


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Capítulo 1

O já habitual grito matinal de horror era o som de Arthur Dent ao acordar e lembrarse de onde estava. O que o perturbava não era apenas a caverna fria nem o fato de ser úmida e fedorenta. Era o fato de que ela ficava bem no meio de Islington e que o próximo ônibus só

iria passar dentro de dois milhões de anos.

O tempo é, por assim dizer, o pior lugar onde ficar perdido, como Arthur Dent havia descoberto. Ele já tinha se perdido várias vezes, tanto no tempo quanto no espaço. Pelo menos estar perdido no espaço mantém a pessoa ocupada.

Estava ilhado na Terra Pré-Histórica como resultado de uma complexa seqüência de eventos envolvendo o fato de ele ter sido alternadamente detonado ou insultado em regiões da Galáxia mais estranhas do que poderia sonhar. Por conta disso, ainda que sua vida no momento fosse extremamente monótona, continuava se sentindo muito assustado. Fazia cinco anos que ninguém o detonava.

Como não tinha encontrado ninguém desde que ele e Ford Prefect se separaram quatro anos antes, também não havia sido insultado durante todo aquele tempo. Exceto uma vez.

Aconteceu numa tarde de primavera cerca de dois anos antes.

Ele estava voltando para sua caverna, pouco depois do entardecer, quando percebeu estranhas luzes piscando através das nuvens. Virou-se para observar, sentindo seu coração encher-se de esperança. Resgate. Uma saída. O sonho impossível de todo náufrago: uma nave.

Observou, fascinado e animado, uma nave prateada e comprida descer em meio à

brisa morna da tarde, em silêncio, delicadamente, suas longas e esguias hastes desdobrandose em um suave bale tecnológico. Assentou-se suavemente no terreno e o pequeno zumbido que havia gerado sumiu, como se fosse embalado pela calma da tarde.

Uma rampa estendeu-se.

Surgiram luzes pela abertura.

Uma silhueta alta apareceu na portinhola, desceu a rampa e parou bem na frente de Arthur.

― Você é um idiota, Dent ― foi tudo o que disse.

Era um alienígena, do tipo bem alienígena. Tinha uma altura peculiarmente alienígena, uma cabeça achatada peculiarmente alienígena, pequenos olhos em fenda peculiarmente alienígenas, estava vestido com uma roupa elaboradamente desenhada e usava um colar peculiarmente alienígena, e tinha uma cor pálida cinza-esverdeada de alienígena que reluzia com um brilho lustroso que a maioria das faces cinza-esverdeadas só

podia conseguir por meio de muitos exercícios e de sabonetes absurdamente caros. Arthur olhou-o, atônito.

O alienígena olhou-o de volta.

O sentimento inicial de esperança e excitação havia sido completamente superado pelo espanto, e pensamentos de todos os tipos estavam, naquele momento, brigando pelo controle de suas cordas vocais.

― Qqqu...? ― disse ele. ― Mmms... ah... aahn... ― acrescentou em seguida. ―

Qqqm... eeeerrr... ehh... quem? – conseguiu finalmente dizer e depois caiu numa espécie de silêncio frenético. Estava sentindo os efeitos de não ter dito nada a ninguém por mais tempo do que podia se lembrar.

A criatura alienígena franziu o rosto brevemente e consultou uma espécie de

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prancheta que estava segurando com sua mão fina e esguia de alienígena.

― Arthur Dent? ― disse ele.

Arthur assentiu, balançando a cabeça.

― Arthur Phillip Dent? ― prosseguiu o alienígena, com um tom de voz de firme.

― Ahhh... ah... sim... éééé... éééé ― confirmou Arthur.

― Você é um idiota ― repetiu o alienígena ―, um bundão completo.

― Ehhh...

A criatura pareceu ter ficado satisfeita com aquilo. Balançou a cabeça levemente, depois fez uma marquinha peculiarmente alienígena em sua prancheta e virou-se bruscamente, caminhando em direção à nave.

― Ehhh... ― disse Arthur, desesperado. ― Ehhhh...

― Ah, não me venha com esse papo! ― retrucou o alienígena. Subiu a rampa, passou pela portinhola e desapareceu dentro da nave. A portinhola se fechou, a rampa foi recolhida e a nave começou a emitir um leve zumbido grave.

― Ehhh, hei! ― gritou Arthur, correndo logo em seguida na direção da nave. ―

Espere aí! ― disse. ― O que foi isso? O quê? Espere!

A nave elevou-se no ar, removendo seu peso como quem joga uma capa no chão, e pairou brevemente. Balançava estranhamente no céu da tarde. Passou pelas nuvens, iluminando-as brevemente, e depois se foi, deixando Arthur sozinho, naquela imensidão de terra, dançando uma pequena dança patética e sem sentido.

― O quê? ― gritou Arthur. ― O quê? Quê? Ei, o que foi? Volte aqui e repita isso!

Pulou e dançou até suas pernas começarem a tremer, gritou até seus pulmões arderem. Ninguém respondeu. Não tinha ninguém para ouvir ou falar com ele. A nave alienígena já cruzava em alta velocidade as camadas mais altas da atmosfera, a caminho do vazio aterrador que separa as poucas coisas que existem no Universo umas das outras.

No interior da nave, seu ocupante, o alienígena com a pele milionária, estava esticado no único assento. Seu nome era Wowbagger, o Infinitamente Prolongado. Um homem com um objetivo. Na verdade, não era um objetivo muito nobre, como ele mesmo seria o primeiro a admitir, mas ao menos tinha um objetivo e isso o mantinha ocupado. Wowbagger, o Infinitamente Prolongado, era ― na verdade, é ― um dos pouquíssimos seres imortais do Universo.

Aqueles que já nascem imortais sabem como lidar com isso instintivamente. Contudo, Wowbagger não tinha nascido imortal. Não. Passou a desprezar os imortais, aquela corja de babacas tranqüilões. Tinha se tornado imortal por um infeliz acidente envolvendo um acelerador de partículas irracionais, uma refeição líquida e um par de elásticos. Os detalhes exatos do acidente não são importantes, porque ninguém jamais foi capaz de duplicar as circunstâncias exatas em que as coisas aconteceram e, ao tentarem, muitas pessoas acabaram ficando com cara de idiotas, morreram no processo, ou ambas as coisas.

Com uma careta e uma expressão de cansaço, Wowbagger fechou seus olhos, colocou uma música de fundo no som da nave e pensou que até poderia ter conseguido... Se não fosse pelas tardes de domingo, teria conseguido.

No início tudo parecia engraçado: havia se divertido muito, vivendo perigosamente, se arriscando ao extremo, enriquecendo com investimentos de longo prazo e altas taxas de retorno e, no geral, permanecendo vivo enquanto os outros morriam. Contudo, no final foram as tardes de domingo que se tornaram insuportáveis: aquela terrível sensação de não ter absolutamente nada para fazer que se instala em torno das 14h55, quando você sabe que já tomou um número mais que razoável de banhos naquele dia, quando sabe que, por mais que tente se concentrar nos artigos dos jornais, você nunca

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conseguirá lê-los nem colocar em prática a nova e revolucionária técnica de jardinagem que eles descrevem, e quando sabe que, enquanto olha para o relógio, os ponteiros se movem impiedosamente em direção às 16 horas e logo você entrará no longo e sombrio entardecer da alma.

A partir daí as coisas começaram a perder o sentido. Os sorrisos alegres que costumava distribuir durante os funerais dos outros começaram a sumir. Aos poucos, começou a desprezar o Universo em geral e cada um dos seus habitantes em particular. Foi então que concebeu seu objetivo, aquilo que o faria prosseguir e que, até onde podia compreender, iria fazê-lo prosseguir para todo o sempre. Era o seguinte: Iria insultar o Universo.

Isto é, iria insultar todos no Universo. Individualmente, pessoalmente e ― esse foi o ponto no qual realmente decidiu se empenhar ― em ordem alfabética. Quando as pessoas reclamavam cora ele, como algumas vezes já o tinham feito, que o plano não somente era mal-intencionado como também completamente impossível, devido ao número de pessoas que nasciam e morriam sem parar, ele simplesmente as encarava com um olhar gélido e dizia:

― Um homem tem o direito de sonhar, não é?

Foi assim que tudo começou. Construiu uma nave feita Para durar, com um computador capaz de lidar com a infinitude de dados necessário para manter o controle de toda a população do Universo conhecido e calcular as complicadas rotas envolvidas. Sua nave atravessou as órbitas internas do sistema estelar Sol, preparando-se para ganhar impulso ao circundar sua estrela e depois partir para o espaço interestelar.

― Computador.

― Presente ― respondeu o computador.

― Para onde vamos?

― Vou calcular.

Wowbagger observou por alguns instantes o intricado colar de brilhantes da noite, bilhões de pequenos diamantes polvilhando a infinita escuridão com sua luz. Cada um deles, absolutamente todos, estava em seu itinerário. Iria passar milhões de vezes pela grande maioria deles.

Imaginou brevemente sua rota, conectando todos os pontos do céu como um desenho infantil de unir os pontos. Torceu para que, visto de algum lugar do Universo, aquele traçado soletrasse uma palavra extremamente obscena.

O computador emitiu um bipe chocho para indicar que havia terminado seus cálculos.

― Folfanga ― disse. E bipou novamente. ― Quarto planeta do sistema Folfanga

― prosseguiu. E bipou mais uma vez. ― Duração estimada para a viagem: três semanas ―

disse depois. Bipou de novo. ― Vamos encontrar uma pequena lesma ― bipou ― do gênero A-Rth-Urp-Hil-Ipdenu. ― Acredito ― acrescentou, após uma breve pausa na qual bipou ― que você decidiu chamá-la de "bundona descerebrada". Wowbagger resmungou. De sua janela, observou a grandiosidade da criação por mais alguns instantes.

― Acho que vou tirar um cochilo. Por quais redes de transmissão vamos passar durante as próximas horas?

O computador bipou.

― Cosmovid, Thinkpix e Home Brain Box ― disse. Então bipou mais uma vez.

― Vai passar algum filme a que eu ainda não tenha assistido umas 30 mil vezes?

― Não.

― Ah.

― Bem, tem Angústia no Espaço. Este você só viu 33.517 vezes.

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― Me acorde para a segunda parte. O computador bipou.

― Durma bem ― disse.

A nave deslizava pela noite.

Enquanto isso, na Terra, caía uma chuva fina. Arthur Dent sentou-se em sua caverna e teve uma das noites mais tenebrosas de sua vida, pensando em milhares de coisas que poderia ter dito ao alienígena e matando mosquitos, que também tiveram uma noite bem tenebrosa.

No dia seguinte, decidiu fazer uma sacola usando uma pele de coelho porque achou que seria útil para colocar coisas dentro.


Capítulo 2

Dois anos depois disso ter acontecido, a manhã estava doce e calma quando Arthur saiu da caverna que chamava de "casa" até conseguir encontrar um nome melhor para aquilo ou então encontrar uma caverna melhor.

Sua garganta estava novamente irritada devido a seu grito matinal de horror, mas ainda assim ele estava de ótimo humor. Enrolou firmemente seu roupão esfarrapado ao redor do corpo e sorriu, feliz, olhando aquela linda manhã.

O ar estava claro e cheio de aromas suaves, a brisa acariciava levemente a grama alta que cercava a caverna, os pássaros gorjeavam uns para os outros, as borboletas borboleteavam lindamente ao seu redor e toda a natureza parecia conspirar para ser tão gentil e agradável quanto possível.

Não eram, contudo, aquelas delícias bucólicas que haviam deixado Arthur tão feliz. Ele acabara de ter uma ótima idéia sobre como lidar com o terrível e solitário isolamento, os pesadelos, o fracasso de todas as suas tentativas de horticultura e a completa ausência de futuro e a futilidade de sua vida ali, na Terra pré-histórica. Tinha decidido enlouquecer. Sorriu de novo, feliz, e mordeu um pedaço de perna de coelho que havia sobrado de seu jantar. Mastigou alegremente durante algum tempo e então resolveu anunciar formalmente sua decisão.

Ficou de pé, endireitou o corpo e olhou de frente para os campos e montanhas. Para dar mais peso às suas palavras, enfiou o osso de coelho na barba. Abriu bem os braços e disse:

― Vou ficar louco!

― Boa idéia ― disse Ford Prefect, descendo com cuidado de uma rocha onde estivera sentado.

O cérebro de Arthur fez piruetas. Seu maxilar fez flexões.

― Eu fiquei louco por um tempo ― disse Ford ― e isso me fez muito bem. Os olhos de Arthur começaram a dar cambalhotas.

― Sabe... ― disse Ford.

― Por onde você andou? ― interrompeu Arthur, agora que sua cabeça havia parado com a ginástica.

― Por aí ― respondeu Ford ―, aqui e ali. ― Ele sorriu de uma forma que julgou (corretamente) ser absolutamente irritante. ― Tirei minha mente de circulação por uns tempos. Achei que, se o mundo precisasse muito de mim, ele viria me chamar. E veio. Pegou em sua mochila, agora completamente em farrapos, seu Sensormático Subeta.

― Pelo menos ― prosseguiu ― acho que veio. Isso aqui tem se mexido bastante.

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― Sacudiu o Subeta. ― Se for um alarme falso, vou enlouquecer. De novo. Arthur sacudiu a cabeça e sentou-se. Olhou para cima.

― Achei que você estivesse morto... ― disse, perplexo.

― Foi o mesmo que eu pensei durante algum tempo ― disse Ford ― e depois decidi que eu era um limão durante algumas semanas. Me diverti bastante nessa época, pulando para dentro e para fora de um gim-tônica.

Arthur limpou a garganta, depois repetiu:

― Onde ― disse ele ― é que você...?

― Onde encontrei gim-tônica? ― disse Ford, animado. ― Encontrei um pequeno lago que pensava ser um gim-tônica, então fiquei pulando para dentro e para fora dele. Bem, pelo menos creio que ele achava que era um gim-tônica.

― Eu poderia ― disse com um sorriso que faria qualquer homem são procurar abrigo nas árvores ― ter imaginado tudo isso.

Esperou alguma reação de Arthur, mas este já o conhecia demasiadamente bem.

― Continue ― disse ele, sem se alterar.

― Como você pode ver ― disse Ford ―, o sentido disso tudo é que não há sentido em tentar enlouquecer para impedir-se de ficar louco. Você pode muito bem dar-se por vencido e guardar sua sanidade para mais tarde.

― E isto é seu estado de sanidade, não é? ― disse Arthur. ― Estou perguntando apenas por curiosidade.

― Fui até a África. ― disse Ford. ― É?

― É.

― E como foi lá?

― Então esta é sua caverna, não é? ― disse Ford.

― Ehh, sim – respondeu Arthur. Sentia-se muito estranho. Após quase quatro anos de isolamento, estava tão feliz e aliviado por reencontrar Ford que tinha vontade de chorar. Por outro lado, Ford era uma pessoa que se tornava insuportável quase instantaneamente.

― Muito legal ― disse Ford, falando da caverna de Arthur.

― Você deve odiá-la.

Arthur sequer se preocupou em responder.

― A África foi bem interessante ― prosseguiu. ― Me comportei de forma bem estranha por lá.

Olhou para longe, pensativo.

― Resolvi ser cruel com os animais ― disse, meio aéreo. ― Mas apenas por diversão.

― Não me diga ― respondeu Arthur, cauteloso.

― É verdade ― afirmou Ford. ― Não vou perturbá-lo com os detalhes porque eles iriam...

― O quê?

― Perturbá-lo. Mas você pode achar interessante saber que sou o integralmente responsável pela evolução do animal que, dentro de alguns séculos, vocês irão chamar de girafa. Também tentei aprender a voar. Acredita?

― Conte-me.

― Eu conto depois. Só vou mencionar que o Guia diz...

― O quê?

― O Guia do Mochileiro das Galáxias. Você se lembra, não?

― Sim, lembro-me de tê-lo jogado no rio.

― Ê, mas eu o pesquei de volta depois ― disse Ford.

― Você não me contou isso.

― Não queria que você o jogasse fora de novo.

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― Tudo bem ― respondeu Arthur. ― E o que ele diz?

― O quê?

― O que o Guia diz?

― Ah. O Guia diz que há toda uma arte para voar ― respondeu Ford. ― Ou melhor, um jeitinho. O jeitinho consiste em aprender como se jogar no chão e errar. ― Deu um sorrisinho. Apontou para as marcas em suas calças na altura dos joelhos e levantou os braços para mostrar os ombros. Estavam arranhados e machucados. ― Até agora não dei muita sorte ― disse. Depois estendeu a mão. ― Estou muito feliz em vê-lo novamente, Arthur.

Arthur sacudiu a cabeça em um acesso súbito de emoção e perplexidade.

― Há anos que não vejo alguém ― disse. – Absolutamente ninguém. Mal me lembro de como se fala. Me esqueço de algumas palavras. Tenho praticado, sabe. Eu pratico falando com... falando com... como se chamam aquelas coisas que fazem os outros acharem que ficamos loucos quando falamos com elas? Como George III.

― Reis? ― tentou Ford.

― Não, não ― respondeu Arthur. ― As coisas com as quais ele costumava falar. Estamos cercados por elas, mas que droga. Eu mesmo plantei centenas delas. Todas morreram. Árvores! Eu pratico falando com árvores. Para que é isso?

Ford continuava com a mão estendida. Arthur olhava, sem entender.

― Aperte ― sugeriu Ford.

Arthur apertou a mão, meio nervoso no início, como se ela pudesse se transformar em um peixe. Então segurou-a vigorosamente com suas duas mãos, sentindo um enorme alívio. Apertou, apertou e apertou.

Depois de um tempo, Ford achou que já bastava. Subiram em uma colina rochosa próxima e olharam o cenário em volta.

― O que aconteceu com os golgafrinchenses? Arthur deu de ombros.

― Muitos não sobreviveram ao inverno, três anos atrás. Os poucos que viveram até

a primavera disseram que precisavam de umas férias e partiram em uma jangada. A História nos diz que devem ter sobrevivido...

― É ― disse Ford. ― Certo, certo. ― Ele colocou as mãos na cintura e olhou novamente em volta para o planeta vazio. Repentinamente, Ford sentiu-se cheio de energia e perspectivas.

― Estamos de partida ― disse, animado.

― Para onde? Como? ― perguntou Arthur.

― Não sei ― disse Ford ―, mas posso sentir que chegou a hora. Vão acontecer coisas. Estamos a caminho.

Falou em voz baixa, quase sussurrando.

― Detectei ― disse ele ― perturbações na corrente. Lançou um olhar decidido para o horizonte, como se quisesse que o vento soprasse em seus cabelos dramaticamente naquele momento. O vento, contudo, estava ocupado brincando com umas folhas não muito longe.

Arthur pediu para Ford repetir o que acabara de dizer, porque não havia compreendido totalmente o sentido. Ford repetiu.

― A corrente? ― perguntou Arthur.

― A corrente do espaço-tempo ― disse Ford e, quando o vento soprou brevemente ao redor deles, abriu um largo sorriso.

Arthur concordou, e limpou a garganta.

― Estaríamos falando ― perguntou, cautelosamente ― a respeito de alguma coisa que os vogons arrastam por aí ou o que exatamente?

― Há um zéfiro ― disse Ford ― no contínuo espaço-temporal.

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― Ah ― concordou Arthur ―, onde ele está? Onde está? ― Colocou as mãos nos bolsos de seu roupão e perscrutou o horizonte.

― O quê?

― Bem, quem é esse tal de Zéfiro exatamente? ― perguntou Arthur. Ford olhou para ele, furioso.

― Você quer me ouvir, por favor? Não estou falando de uma pessoal

― Eu estava ouvindo ― disse Arthur ―, mas não acho que tenha ajudado muito. Ford agarrou-o pelas lapelas do roupão e falou com ele tão lenta, articulada e pacientemente como se fosse alguém do serviço de atendimento ao cliente de uma companhia telefônica.

― Parece... ― disse ― ...haver alguns núcleos... ― disse em seguida ― ...de instabilidade... ― continuou ― ...na tessitura... ― prosseguiu. Arthur olhava abestalhado para o tecido de seu roupão, onde Ford o segurava. Ford soltou o roupão antes que Arthur transformasse seu olhar abestalhado em uma observação abestalhada.

― ...na tessitura do espaço-tempo ― concluiu.

― Ah, é isso ― disse Arthur.

― Sim, isso ― confirmou Ford.

Lá estavam eles, sozinhos sobre uma colina na Terra pré-histórica, olhando um para o outro intensamente.

― E isso fez o quê? ― disse Arthur.

― Isso ― respondeu Ford ― desenvolveu núcleos de instabilidade.

― É mesmo?? ― disse Arthur, sem piscar os olhos por um segundo sequer.

― Sim, de fato ― retrucou Ford, com o mesmo grau de imobilidade ocular.

― Que bom! ― disse Arthur.

― Entendeu? ― disse Ford.

― Não ― disse Arthur. Fizeram uma pausa silenciosa.

― A dificuldade desta conversa ― disse Arthur, depois que uma expressão pensativa havia lentamente subido por todo o seu rosto, como um alpinista escalando uma passagem traiçoeira ― é que ela é muito diferente das que tenho tido nos últimos tempos. Como expliquei há pouco, foram basicamente com árvores. Não eram assim. Exceto talvez por algumas conversas que tive com os olmeiros, que algumas vezes ficam um pouco desorientados.

― Arthur ― disse Ford.

― Sim? ― disse Arthur.

― Basta acreditar no que eu lhe disser e tudo será extremamente simples.

― Puxa, não sei se acredito nisso.

Sentaram-se para tentar reorganizar os pensamentos. Ford pegou o Sensormático Subeta. Estava emitindo zumbidos variados e havia uma luz piscando, fraquinha.

― Pilha fraca?

― Não ― disse Ford ―, há uma perturbação em movimento na tessitura do espaço-tempo, um zéfiro, um núcleo de instabilidade, e parece estar bem próximo de nós.

― Onde?

Ford moveu o aparelho em um semicírculo, balançando-o ligeiramente. De repente a luz piscou.

― Lá! ― disse Ford, apontando com o braço. ― Bem atrás daquele sofá!

Arthur olhou. Ficou completamente surpreso ao notar que havia um sofá

Chesterfield, forrado de veludo paisley, no campo bem na frente deles. Olhou para ele com uma perplexidade inteligente. Perguntas perspicazes perpassaram sua mente.

― Por que ― perguntou ele ― tem um sofá naquele campo?

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― Acabei de explicar! ― gritou Ford, irritado. ― Um zéfiro no contínuo espaçotemporal.

― E este sofá é do Zéfiro? ― perguntou Arthur, tentando se apoiar em seus pés e, apesar da falta de otimismo, também em seus sentidos.

― Arthur! ― gritou Ford com ele. ― Aquele sofá está ali por causa da instabilidade no espaço-tempo que estou tentando incutir em sua mente terminalmente debilitada. Ele foi jogado para fora do contínuo, é um resíduo nas margens do espaço-tempo

― aliás, seja o que for, temos que agarrá-lo, pois é a única forma de sairmos daqui!

Saltou até a base da rocha onde estavam e começou a correr pelo campo.

“Agarrá-lo?”, pensou Arthur, depois levantou as sobrancelhas, espantado, quando viu que o Chesterfield estava balançando e flutuando lentamente pela grama. Com um grito de prazer totalmente inesperado, desceu saltitante da rocha e saiu correndo atrás de Ford Prefect e daquela peça irracional de mobília. Correram tresloucadamente pela grama, pulando, rindo e gritando instruções para levar aquela coisa para um lado ou para o outro. O sol brilhava ardentemente sobre a relva e pequenos animais saíam correndo para abrir caminho.

Arthur sentia-se feliz. Estava profundamente contente porque, pelo menos uma vez, seu dia estava saindo exatamente como planejado. Há apenas 20 minutos havia decidido ficar louco e, pouco depois, lá estava ele, caçando um Chesterfield através dos campos da Terra pré-histórica.

O sofá ondulava de um lado para o outro, parecendo ser ao mesmo tempo tão sólido quanto as árvores ao passar entre algumas delas e tão nebuloso quanto um sonho alucinado ao flutuar como um fantasma através de outras.

Ford e Arthur corriam desvairadamente atrás dele, mas o sofá se desviava e se esquivava como se seguisse uma complexa topografia matemática própria ― era exatamente o que estava fazendo. Continuavam a perseguição, o sofá continuava dançando e girando, até que, subitamente, virou-se e mergulhou, como se estivesse cruzando o limite de um gráfico catastrófico, e se viram praticamente em cima dele. Dando impulso e gritando, subiram no sofá, o sol tremeluziu, caíram por um vazio doentio e apareceram inesperadamente no meio do campo de críquete conhecido como Lord's Cricket Ground, em St. John's Wood, Londres, perto do final da última partida [Test Match] da Série Australiana no ano de 198―, quando a Inglaterra precisava de apenas 28 runs para vencer.

Capítulo 3

Fatos importantes extraídos da História Galáctica, número um: (Reproduzido do Livro de História Galáctica Popular do Síderial Daily Mentioner's.) O céu noturno do planeta Krikkit é a vista menos interessante de todo o Universo.

Capítulo 4

Era um dia lindo e agradável no Lord's Cricket Ground quando Ford e Arthur foram casualmente jogados para fora de uma anomalia espaço-temporal e se estatelaram violentamente sobre o gramado perfeito.

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A torcida aplaudia estrondosamente. Não eram eles que estavam sendo aplaudidos, mas se curvaram, em um gesto instintivo de agradecimento, o que foi uma grande sorte, já

que a pequena e pesada bola vermelha que a torcida estava aplaudindo passou zunindo a poucos milímetros da cabeça de Arthur. Na multidão, um homem desmaiou. Eles se jogaram de volta no chão, que parecia girar de forma medonha em torno deles.

― O que foi isso? ― sussurrou Arthur.

― Algo vermelho ― sussurrou Ford de volta.

― Onde estamos?

― Ahn, sobre algo verde.

― Formas ― murmurou Arthur. ― Preciso de formas.

O aplauso da multidão foi rapidamente substituído por exclamações de perplexidade e pelas risadas tensas de centenas de pessoas que ainda não tinham decidido se acreditavam ou não no que haviam acabado de ver.

― Este sofá é de vocês? ― disse uma voz.

― O que foi isso? ― sussurrou Ford.

Arthur olhou para cima.

― Algo azul.

― Forma? ― perguntou Ford.

Arthur olhou novamente.

― Tem a forma ― sussurrou para Ford, com as sobrancelhas furiosamente contraídas ― de um policial.

Permaneceram agachados por alguns instantes, franzindo os olhos o máximo possível. A coisa azul com a forma de policial cutucou os dois.

― Vamos lá, vocês dois ― disse a forma ―, vamos andando. Essas palavras tiveram um forte efeito sobre Arthur. Em um segundo estava de pé, como um escritor ao ouvir o telefone tocar, e olhou espantado para as coisas em volta dele, que haviam se fixado em uma familiaridade bem terrível.

― De onde você tirou isso? ― gritou para a forma de policial.

― O que você disse? ― respondeu a forma, espantada.

― Isso aqui é Lord's Cricket Ground, não é? ― retrucou Arthur. ― Onde você

encontrou isso, como você o trouxe até aqui? Acho ― acrescentou, colocando a mão na testa ― que é melhor eu me acalmar. ― Agachou-se abruptamente diante de Ford.

― É um policial ― disse. ― O que vamos fazer? Ford deu de ombros.

― O que você quer fazer?

― Eu quero ― disse Arthur ― que você me diga que passei os últimos cinco anos sonhando.

Ford deu de ombros novamente e obedeceu.

― Você passou os últimos cinco anos sonhando. Arthur levantou-se outra vez.

― Está tudo bem, seu guarda ― disse ele. ― Eu passei os últimos cinco anos sonhando. Pergunte a ele ― acrescentou, apontando para Ford ―, ele também estava no sonho.

Tendo dito isso, saiu andando em direção à divisória do campo, espanando o pó de seu roupão. Foi então que notou seu roupão e parou. Olhou para ele. Atirou-se sobre o guarda.

― Então de onde foi que vieram estas roupas? ― gritou. Desmaiou e caiu sobre o gramado.

Ford balançou a cabeça.

― Os últimos dois milhões de anos foram difíceis para ele ― disse para o guarda. Juntos, colocaram Arthur sobre o sofá e o carregaram para fora do campo, sendo

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brevemente interrompidos, no meio do caminho, pela súbita desaparição do sofá. A multidão reagiu de formas bem variadas a tudo isso. Muitos não tiveram estômago para assistir à cena e preferiram ouvir a narração pelo rádio.

― Olha, Brian, essa foi interessante ― disse um dos locutores para o outro. ― Não me lembro de nenhuma materialização misteriosa no campo desde que... bom, acho que isso nunca aconteceu antes, não que eu me lembre.

― Que tal Edgbaston, 1932?

― O que foi que aconteceu por lá? Y

― Bem, Peter, acho que era Canter contra Wilícox, vindo para arremessar do extremo do campo quando um espectador subitamente atravessou o gramado. Ficaram em silêncio enquanto o primeiro locutor pensava a respeito.

― Eeeeeé... é ― disse ele. ― Bem, não vejo nenhum grande mistério nisso, não é

mesmo? Pelo que entendi, o sujeito não se materializou em campo, ele apenas entrou correndo, não?

― É verdade, é verdade, mas ele disse que tinha visto algo se materializar no campo.

― Ah! E o que ele viu?

― Acho que era um jacaré.

― Certo. E alguém mais notou o jacaré em campo?

― Aparentemente não. Como ninguém conseguiu que o tal homem desse uma descrição muito detalhada, fizeram uma busca rápida pelo campo mas não acharam nada.

― E que fim levou o sujeito?

― Bem, pelo que me lembro, alguém se ofereceu para tirá-lo de lá e pagar um almoço para o homem, mas ele disse que já havia comido muito, então deixaram o caso de lado e a partida acabou com Warwickshire vencendo por três wickets.

― Eu diria que foi bem diferente desse caso agora. Para os ouvintes que acabaram de sintonizar nossa transmissão, o que está acontecendo por aqui é que... bem... dois homens

― usando uns farrapos em péssimo estado, aliás ― e também um sofá... Era um Chesterfield, não era?

― Isso mesmo, Peter, um Chesterfield.

― Eles se materializaram sensacionalmente bem aqui, no meio do Lord's Cricket Ground. Mas não acho que tenham feito isso por maldade, parecem bemintencionados e...

― Peter, Peter, um momento... Queria interrompê-lo para dizer que o sofá acaba de desaparecer.

― Ê verdade. Temos um mistério a menos, então. Ainda assim, definitivamente essa vai entrar para a história, sobretudo porque ocorreu em um momento dramático da partida, a Inglaterra só precisa de 24 runs para vencer a rodada. Neste momento, um policial está escoltando os dois homens para fora do gramado, os espectadores estão se sentando e parece que a partida vai recomeçar.

― Senhor ― disse o policial depois que passaram por um grupo de espectadores curiosos e colocaram o corpo pacificamente inerte de Arthur sobre um cobertor ―, talvez possa me contar quem você é, de onde vem e qual o significado de toda essa confusão?

Ford olhou para o chão por um momento, como se estivesse se preparando para algo, depois endireitou-se e disparou um olhar para o policial que o atingiu com toda a força de cada milímetro dos 600 anos-luz de distância que separam a Terra e o planeta de Ford, próximo de Betelgeuse.

― Tudo bem ― disse Ford, com toda a calma do mundo ―, vou contar.

― Ah, olha, não vai ser necessário ― disse o policial apressadamente. ― Apenas não deixe que seja lá o que for aconteça de novo. ― O policial virou-se e partiu em busca de alguém que não fosse de Betelgeuse. Felizmente o campo estava cheio de pessoas assim.

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A consciência de Arthur aproximou-se de seu corpo, relutantemente, como se viesse de muito longe. Ela já tinha passado por maus bocados lá dentro. Tensa e lentamente, entrou e assentou-se em sua posição habitual.

Arthur sentou-se.

― Onde estou? ― perguntou.

― No Lord's Cricket Ground ― respondeu Ford.

― Ótimo ― disse Arthur, e sua consciência saiu de novo para tomar um pouco de ar. Seu corpo voltou a cair na grama.

Dez minutos depois, agarrado a uma xícara de chá em uma barraquinha de refrigerantes, seu rosto exausto já estava menos pálido.

― Como está se sentindo? ― perguntou Ford.

― Estou em casa ― respondeu Arthur, com uma voz rouca. Fechou os olhos e deliciou-se com o aroma de seu chá como se fosse... bem, do ponto de vista de Arthur, como se aquilo fosse chá, o que de fato era.

― Estou em casa ― repetiu ―, em casa. Estou na Inglaterra, no presente, o pesadelo acabou. ― Abriu seus olhos novamente e deu um sorriso sereno. ― Estou aqui, onde pertenço ― disse, com um suspiro emocionado.

― Acho que há duas coisas que devo lhe dizer ― disse Ford, colocando um exemplar do jornal Guardian à frente de Arthur.

― Estou em casa ― disse Arthur.

― Sim ― disse Ford. ― A primeira coisa ― continuou, apontando para a data impressa no jornal ― é que a Terra será demolida dentro de dois dias. Estou em casa ― disse Arthur. ― Chá, críquete, grama aparada, bancos de madeira, blazers de linho branco, latas de cerveja...

Focou lentamente o jornal. Torceu um pouco a cabeça para o lado e franziu a testa.

― Acho que já vi isso antes. ― Seus olhos subiram lentamente pela página até

chegar à data, sobre a qual Ford continuava batendo com o dedo. Seu rosto se congelou durante alguns segundos, depois começou a fazer aquela coisa terrível de rachar lentamente que os icebergs do Ártico costumam fazer de forma tão dramática na primavera.

― A outra coisa ― disse Ford ― é que há um osso enfiado em sua barba. ― Ele tomou seu chá.

Do lado de fora da barraquinha de refrigerantes, o sol brilhava sobre uma multidão alegre. Brilhava sobre chapéus brancos e rostos rosados. Brilhava sobre picolés, derretendoos. Brilhava sobre as lágrimas das criancinhas cujos picolés derretiam e caíam no chão. Brilhava sobre as árvores, reluzia nos bastões de críquete que giravam, fulgurava sobre um objeto absolutamente extraordinário que estava estacionado atrás dos outdoors e que, aparentemente, ninguém havia notado. Resplandecia sobre Ford e Arthur quando saíram da barraquinha de refrigerantes, ofuscados pela claridade, e olharam para a cena em volta. Arthur estava trêmulo.

― Talvez ― ele disse ― eu devesse...

― Não ― retrucou Ford, seco.

― O quê?

― Não tente telefonar para si mesmo em casa.

― Mas como você sabia? Ford deu de ombros.

― Por que não? ― insistiu Arthur.

― Falar consigo mesmo no telefone ― respondeu Ford ― nunca leva a nada.

― Mas...

― Veja ― disse Ford. Pegou um telefone imaginário e apertou teclas imaginárias.

― Alô? ― disse ele, no fone imaginário. ― Gostaria de falar com Arthur Dent?

Ah, sim, bom dia. Aqui é Arthur Dent falando. Não desligue.

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Lançou um olhar desapontado para o fone imaginário.

― Desligou! ― disse, e depois colocou o fone imaginário cuidadosamente de volta em seu gancho imaginário. ― Olha, esta não é minha primeira anomalia temporal. Um olhar ainda mais abatido substituiu o olhar abatido no rosto de Arthur.

― Quer dizer que não estamos sãos e salvos em casa, relaxando após um bom banho? ― perguntou.

― Acho que não podemos sequer dizer ― respondeu Ford ― que estamos em casa nos secando vigorosamente com uma toalha.

O jogo prosseguia. O arremessador aproximou-se do wicket com passos rápidos, depois trotando, então correndo. Subitamente explodiu em uma rajada de braços e pernas da qual saiu voando uma bola. O rebatedor acertou a bola e lançou-a para trás, por cima dos outdoors. Ford seguiu a bola com os olhos e congelou por um instante. Ficou imóvel. Percorreu novamente a trajetória da bola e mais uma vez seus olhos se contraíram.

― Esta não é minha toalha ― disse Arthur, que estava revirando o conteúdo de sua bolsa de pele de coelho.

― Psst! ― disse Ford. Travou os olhos, concentrado.

Eu tinha uma toalha esportiva de Golgafrinchan ― prosseguiu Arthur ― que era azul com umas estrelas amarelas. Não é esta!

― Psst! ― repetiu Ford. Cobriu um dos olhos enquanto olhava com o outro.

― Esta é rosa ― disse Arthur. ― Por acaso é sua?

― Queria que você ficasse quieto e parasse de falar sobre sua toalha ― disse Ford.

― Mas não é minha toalha ― insistiu Arthur ―, é justamente isso que estou tentando...

― E eu queria que você ficasse quieto exatamente agora ― completou Ford, quase rosnando.

― Tudo bem ― disse Arthur, colocando a toalha de volta em sua bolsa préhistórica.

― Entendo que provavelmente não seja um evento importante na escala cósmica, mas ainda assim é peculiar. Uma toalha rosa, do nada, em vez da toalha azul com estrelas amarelas...

Ford estava começando a agir de forma bastante estranha, ou talvez não estivesse realmente começando a agir estranhamente, mas começando a agir de uma forma que era estranhamente diferente das outras formas estranhas como ele geralmente agia. Estava fazendo o seguinte: ignorando solenemente os olhares de estranhamento que provocava no restante do público, passava as mãos em movimentos rápidos na frente de seu rosto, agachava-se atrás de algumas pessoas, pulava por trás de outras, depois ficava imóvel, piscando muito. Fez isso por alguns instantes e então começou a andar sorrateiramente para a frente, de forma lenta e dissimulada, com o rosto completamente franzido e concentrado, como um leopardo que não estivesse bem certo de ter visto uma lata quase vazia de comida de gato a um quilômetro de distância em uma planície quente e poeirenta.

― Esta também não é a minha sacola ― disse Arthur, subitamente. Arthur quebrou a concentração de Ford, que olhou para ele irritado.

― Não estava mais falando sobre minha toalha ― disse Arthur.

― Já concluímos que não é minha. É que a bolsa onde estava guardando a toalha, a tal que não é minha, também não é minha, apesar de ser incrivelmente parecida. Pessoalmente acho que isso é muito estranho, até porque eu mesmo fiz essa bolsa na Terra pré-histórica. E estas também não são minhas pedras ― acrescentou, tirando algumas pedras cinzentas e achatadas da bolsa. ― Estava fazendo uma coleção de pedras interessantes e estas aqui são claramente bobas.

Um grito animado varreu a multidão e interrompeu qualquer coisa que Ford fosse

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responder. A bola de críquete, que havia causado aquela reação, caiu do céu precisamente dentro da misteriosa bolsa de pele de coelho de Arthur.

― Devo dizer que este também foi um evento muito peculiar ― disse Arthur, fechando rapidamente sua bolsa e fingindo procurar a bola no chão.

― Acho que não caiu aqui ― disse para os garotos que imediatamente se juntaram ao seu redor procurando a bolinha.

― Provavelmente rolou para outro lugar. Acho que foi, para lá.

― Apontou vagamente na direção para a qual gostaria que eles fossem. Um dos garotos ficou olhando para ele, curioso.

― Você está bem? ― perguntou o garoto.

― Não ― respondeu Arthur.

― Então por que você está com um osso em sua barba? ― disse o garoto.

― Estou treinando-o para se sentir bem em qualquer lugar.

― Arthur ficou orgulhoso por ter dito aquilo. Em sua visão, era exatamente o tipo de coisa que iria entreter e estimular a mente de um jovem.

― Ah ― respondeu o garoto, cocando a cabeça enquanto pensava sobre aquilo. ―

Qual o seu nome?

― Dent ― disse Arthur ―, Arthur Dent.

― Você é um idiota, Dent ― disse o garoto ―, um bundão completo. ― Depois olhou para o lado, demonstrando que não estava minimamente preocupado em fugir e finalmente saiu andando, cocando o nariz. Arthur lembrou-se de que a Terra seria demolida novamente dentro de dois dias e, pelo menos uma vez, isso não fez com que se sentisse mal. A partida recomeçou com uma nova bola, o sol continuava brilhando e Ford continuava pulando para cima e para baixo, sacudindo a cabeça e piscando.

― Você está preocupado com alguma coisa, não é? – disse Arthur.

― Acho ― respondeu Ford, em um tom de voz que Arthur já tinha aprendido a reconhecer como algo que precede alguma outra coisa completamente incompreensível ―

que tem um POP ali.

Apontou. Curiosamente, a direção para a qual ele apontou não era para onde estava olhando. Arthur olhou para aquele lado, próximo aos outdoors, e para o outro lado, na direção do campo. Ele assentiu e deu de ombros. Deu de ombros de novo.

― Um o quê? ― perguntou.

― Um POP. –Um P...?

― ...OP.

― E isso seria?

― Um Problema de Outra Pessoa.

― Ah, que bom ― disse Arthur, relaxando. Não tinha idéia do que se tratava, mas o assunto parecia ter terminado. Não tinha.

― Lá ― disse Ford, apontando novamente para os gigantescos outdoors e olhando para o campo.

― Onde?

-Ali! ― disse Ford.

― Estou vendo ― disse Arthur, que não estava.

― Está? ― disse Ford.

― O quê? ― disse Arthur.

― Você está vendo ― disse Ford, pacientemente ― o POP?

― Achei que você tinha dito que isso era problema de outra pessoa.

― Exato.

Arthur assentiu lentamente, cuidadosamente e com uma cara de total imbecilidade.

― E quero saber ― disse Ford ― se você consegue vê-lo.

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― Quer mesmo?

― Sim.

― Com o que ― disse Arthur ― ele se parece?

― E como diabos vou saber, seu burro? ― gritou Ford. ― Se você consegue vê-lo, você é quem tem que me dizer.

Arthur sentiu aquela estranha pulsação atrás das têmporas que era uma marca registrada de muitas de suas conversas com Ford. Sua mente se escondia como um cãozinho assustado no canil. Ford agarrou-o pelo braço.

― Um POP é alguma coisa que não podemos ver, ou não vemos, ou nosso cérebro não nos deixa ver porque pensamos que é um problema de outra pessoa. É isso que POP quer dizer: Problema de Outra Pessoa. O cérebro simplesmente o apaga, como um ponto cego. Se você olhar diretamente para ele, não verá nada, a menos que saiba exatamente o que é. A única chance é conseguir ver algo olhando de soslaio.

― Ah ― disse Arthur ―, então é por isso que...

― Sim ― disse Ford, que sabia o que Arthur iria dizer.

― ...você estava pulando para cima e...

― Sim.

― ...para baixo e piscando...

― Sim.

― ...e...

― Acho que você captou a mensagem.

Eu posso vê-la ― disse Arthur. ― É uma espaçonave. Arthur ficou momentaneamente atordoado pela reação que esta revelação havia provocado. Um ruído veio da multidão estava em completo tumulto. Pessoas corriam em todas as direções, gritando, berrando e tropeçando umas nas outras em completo caos. Deu um passo para trás e olhou em volta espantado. Depois olhou novamente em volta, ainda mais espantado.

― Emocionante, não? ― disse uma aparição. A aparição tremeu diante dos olhos de Arthur, embora, na prática, provavelmente fossem os olhos de Arthur que estavam tremendo diante da aparição. Sua boca também tremeu.

― O... o... o... o... ― disse sua boca.

― Acho que seu time acaba de ganhar ― disse a aparição.

― O... o... o... o... ― repetiu Arthur, pontuando cada tremelique com uma cutucada nas costas de Ford Prefect. Ford observava o tumulto, apreensivo.

― Você é inglês, não é? ― disse a aparição.

― S... s... s... s... sim ― disse Arthur.

― Como eu disse, seu time acaba de ganhar a partida. Isto significa que eles ficam com as Cinzas. Você deve estar muito feliz. Devo dizer que sou particularmente apaixonado pelo críquete, embora prefira que ninguém de outro planeta me ouça dizendo isto. É, realmente não seria nada bom.

A aparição deu o que poderia ter sido um sorriso travesso, mas era difícil dizer ao certo porque o sol estava batendo por trás, criando uma aura ofuscante ao redor de sua cabeça e iluminando seus cabelos e barba grisalhos de uma forma impressionante, dramática e muito difícil de conciliar com sorrisos travessos.

― Mesmo assim ― prosseguiu ― tudo estará acabado dentro de dois dias, não é?

Apesar de que, como lhe disse da última vez em que nos encontramos, eu sinto muitíssimo por isso. Bem, aquilo que tiver que ter sido terá sido.

Arthur tentou falar, mas desistiu da luta desigual. Cutucou Ford novamente.

― Achei que algo terrível houvesse acontecido ― disse Ford ― mas era apenas o final da partida. Temos que sair. Ah, oi, Slartibartfast, o que você está fazendo por aqui?

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― Apenas dando uma volta, você sabe ― disse o velho, seriamente.

― Aquela nave é sua? Você poderia nos dar uma carona até algum lugar?

― Paciência, paciência ― retrucou o velho.

― Tudo bem ― disse Ford. ― É só porque este planeta será demolido em pouco tempo.

― Eu sei ― respondeu Slartibartfast.

― Então, pois é, eu só queria que isto ficasse claro ― disse Ford.

― Está claro.

― E se você acha que realmente é uma boa idéia, a essa altura, ficar perambulando por um campo de críquete...

― Acho.

― A nave é sua, claro.

― De fato.

― Suponho que sim ― disse Ford, depois virou-se bruscamente.

― Alô, Slartibartfast ― disse Arthur, finalmente.

― Alô, terráqueo ― respondeu Slartibartfast.

― Afinal ― disse Ford ― só se morre uma vez.

O velho ignorou o último comentário e olhou intensamente para o campo, com olhos que pareciam espelhar sentimentos sem qualquer relação com o que estava acontecendo lá. O que estava acontecendo lá era que a multidão se reunira num grande círculo em torno do centro do campo. O que Slartibartfast estava vendo era algo que só ele sabia.

Ford estava cantarolando algo. Era apenas uma nota, repetida em intervalos regulares. Ele queria que alguém perguntasse o que estava cantarolando, mas ninguém perguntou. Se alguém tivesse perguntado, teria respondido que estava repetindo várias vezes o início de uma canção de Noel Coward chamada Mad About the Boy (Louco pelo garoto]. Alguém diria, então, que estava cantando apenas uma nota, e ele responderia que, por motivos que lhe pareciam óbvios, estava omitindo a parte do "about the boy". Ficou muito chateado, já que ninguém lhe perguntou nada disso.

― É só que ― acabou dizendo, irritado ―, se não sairmos logo daqui, podemos ficar presos naquela confusão de novo. E nada me deprime mais do que ver um planeta sendo destruído. Com a exceção, talvez, de estar no planeta quando isso acontece. Ou ―

acrescentou, em voz baixa ― assistir a partidas de críquete.

― Paciência ― repetiu Slartibartfast. ― Grandes coisas irão acontecer.

― Foi exatamente o que você disse da última vez ― disse Arthur.

― E aconteceram coisas ― disse Slartibartfast.

― É verdade ― admitiu Arthur.

Ainda assim, aparentemente tudo o que estava acontecendo era uma cerimônia. Tinha sido especialmente preparada para a TV, em detrimento dos espectadores, e tudo o que podiam perceber de onde estavam era o que ouviam em um rádio próximo. Ford estava agressivamente desinteressado. Ele se aborreceu quando explicaram que as Cinzas seriam entregues ao capitão do time da Inglaterra, se enfureceu quando disseram que as Cinzas estavam sendo entregues porque era a enésima vez que a Inglaterra ganhava, rosnou de irritação ao saber que eram os restos de uma trave de críquete e quando, além disso tudo, lhe Pediram para lidar com o fato de que a trave em questão havia sido queimada em Melbourne, na Austrália, em 1882, para simbolizar a "morte do críquete inglês", virou-se para Slartibartfast, inspirou profundamente, mas não pôde dizer nada porque o velho não estava mais lá. Ele seguia rapidamente em direção ao centro do campo com uma forte determinação em seu andar, e seus cabelos, sua barba e sua túnica esvoaçavam atrás dele, o que fazia com que se parecesse muito com Moisés, não fosse pelo

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fato de que o Monte Sinai em geral é representado como um imponente monte fumegante e não como um gramado bem aparado.

― Ele disse para nos encontrarmos na nave ― disse Arthur.

― Por Zárquon, o que diabos este velho tolo está fazendo? ― gritou Ford.

― Está indo nos encontrar em sua nave dentro de dois minutos ― disse Arthur, com uma cara que indicava total ausência de pensamentos. Começaram a andar na direção da nave. Estranhos sons chegavam até eles. Tentaram não ouvi-los, mas não podiam deixar de notar que Slartibartfast estava exigindo, com veemência, que a urna de prata contendo as Cinzas lhe fosse entregue, posto que era, disse ele, "de vital importância para a segurança presente, passada e futura da Galáxia". Era isso que estava causando os risos histéricos. Resolveram ignorar o assunto.

Não puderam, contudo, ignorar o que aconteceu em seguida. Com um barulho similar a 100 mil pessoas dizendo "uop", uma espaçonave branca metálica pareceu se materializar do nada diretamente sobre o campo de críquete e lá ficou parada, com um ar infinitamente ameaçador e um leve zumbido.

Por algum tempo, não fez nada, como se desejasse que as pessoas continuassem com seus afazeres e não se preocupassem com o fato de ela ficar suspensa no ar. Depois fez algo muito extraordinário. Ou, mais precisamente, ela se abriu e deixou que coisas muito extraordinárias saíssem dela, 11 coisas muito extraordinárias. Eram robôs brancos.

O que havia de mais extraordinário a respeito deles era que pareciam estar vestidos para aquele evento. Não apenas eram brancos, mas além disso carregavam coisas que pareciam ser bastões de críquete, e não apenas isso, mas também carregavam o que pareciam ser bolas de críquete, e não apenas isso, mas também usavam joelheiras brancas na parte inferior de suas pernas. As joelheiras eram extraordinárias, porque continham jatos que permitiam a esses robôs curiosamente civilizados descer voando de sua nave suspensa sobre o campo e começar a matar pessoas, que foi exatamente o que eles fizeram.

― Olhe ― disse Arthur ―, parece que está acontecendo alguma coisa.

― Vá para a nave ― gritou Ford. ― Não quero saber, não quero ver, não quero ouvir ― gritou enquanto corria. ― Este não é meu planeta, não escolhi estar aqui, não quero me envolver, só quero que me tirem daqui e me levem para uma festa onde tenha pessoas como eu!

Fumaça e chamas subiam do campo.

― Nossa, parece que a brigada sobrenatural resolveu aparecer por aqui hoje com força total... ― um rádio gargarejou alegremente para si mesmo.

― Eu preciso ― gritou Ford, a fim de esclarecer suas observações anteriores ― é

de um drinque bem forte e uma galera legal. ― Continuou correndo, parando apenas um breve instante para puxar Arthur pelo braço. Arthur havia retomado seu papel habitual durante crises, que era o de ficar parado, com a boca aberta, deixando-se levar pelos eventos.

― Estão jogando críquete ― murmurou Arthur, cambaleando atrás de Ford. ― Juro que estão jogando críquete. Não sei por que, mas é o que estão fazendo. Não estão apenas matando as Pessoas, estão debochando delas ― gritou. ― Ford, estão debochando de nos!

Teria sido difícil não acreditar nisso sem conhecer muito mais História Galáctica do que os poucos pedaços que Arthur havia conseguido pescar em suas viagens. As violentas e fantasmagóricas formas que se moviam na espessa nuvem de fumaça pareciam estar realizando uma série de paródias peculiares de movimentos com os bastões, com a diferença que cada uma das bolas que rebatiam com seus bastões explodia ao tocar em algo. A primeira delas alterou a reação inicial de Arthur, que tinha pensado que aquilo poderia ser um mero golpe publicitário dos fabricantes australianos de margarina.

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Então, tão repentinamente quanto havia começado, acabou-se. Os 11 robôs brancos subiram em meio à nuvem de fumaça em uma formação cerrada e entraram no interior de sua nave branca flutuante que, com o ruído de centenas de milhares de pessoas dizendo

"uop", imediatamente desapareceu no ar, da mesma forma como havia feito "uop" anteriormente.

Durante um instante houve um terrível silêncio de perplexidade e, em seguida, a figura pálida de Slartibartfast surgiu em meio à fumaça, parecendo-se ainda mais com Moisés porque, apesar da persistente ausência do monte, ao menos agora ele estava caminhando através de um imponente e fumegante campo de grama bem aparada. Ele olhou em volta, meio perdido, até vislumbrar Arthur e Ford, que estavam abrindo caminho em meio à multidão apavorada que, nesse momento, estava ocupada correndo em pânico na direção oposta. A multidão estava claramente pensando consigo mesma sobre quão estranho aquele dia estava sendo, sem saber de fato em que direção deveria seguir, se é que deveria seguir em alguma direção.

Slartibartfast estava gesticulando desesperadamente para Ford e Arthur, gritando algo, conforme os três aos poucos convergiam na direção de sua nave, ainda estacionada atrás dos outdoors, ignorada pela multidão que corria desembestada ao redor dela e que provavelmente tinha muitos problemas próprios com os quais lidar.

― Eles grabaram solfaras finzasl ― gritou Slartibartfast, com sua voz fina e trêmula.

O que ele disse? ― perguntou Ford, arfando, enquanto abria caminho à sua frente. Arthur balançou a cabeça.

― Eles... alguma coisa ― respondeu.

― Eles mesaram solfaras finzas! ― gritou Slartibartfast novamente. Ford e Arthur trocaram olhares espantados.

― Parece ser algo importante ― disse Arthur. Parou e gritou:

― O quê?

― Eles grabaram solfaras finzas! ― gritou Slartibartfast, gesticulando para eles.

― Ele está dizendo ― disse Arthur ― que levaram as Cinzas. Pelo menos é o que acho. ― Continuaram correndo.

― As...? ― disse Ford.

― Cinzas ― completou Arthur. ― Os restos queimados de uma trave de críquete. É um troféu. Isso... ― continuou, sem fôlego. ― Aparentemente... é... o que eles... vieram pegar.

― Balançou a cabeça levemente, como se tentasse fazer com que seu cérebro se fixasse na base do crânio.

― Que coisa estranha para nos dizer ― retrucou Ford.

― Que coisa estranha para alguém levar.

― Que nave estranha.

Chegaram à nave. A segunda coisa estranha a respeito da nave era ver o campo de Problema de Outra Pessoa em ação. Agora podiam ver nitidamente a nave simplesmente porque sabiam que estava lá. Era óbvio, contudo, que ninguém mais a via. Não porque estivesse de fato invisível ou algo igualmente hiperimpossível. A tecnologia necessária para tornar algo invisível é tão infinitamente complexa que, em um bilhão de casos, é 999

bilhões, 999 milhões, 999 mil, 999 vezes mais simples e mais eficaz remover a coisa e esquecer o assunto. Uma vez, o ultrafamoso mago-cientista Effrafax de Wug apostou sua vida que, em um ano, seria capaz de tornar a grande megalomontanha Magramal completamente invisível.

Após passar a maior parte do ano futucando com imensas Luxoválvulas e Refratonulificadores e Espectrodefletrônicos, ele percebeu, nove horas antes do prazo final,

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que não ia conseguir.

Então, ele e seus amigos, e os amigos de seus amigos, e os amigos dos amigos de seus amigos, e os amigos dos amigos dos amigos de seus amigos, além de alguns outros que eram menos amigos mas que por acaso tinham uma grande empresa de transportes estelares, se lançaram naquela que é hoje amplamente reconhecida como a mais dura noite de trabalho de toda a história. Como resultado, no dia seguinte Magramal não era mais visível. Effrafax perdeu a aposta ― e também a vida ― apenas porque um juiz pedante notou que: (a) ao andar pela área onde Magramal deveria estar, ele não tropeçou nem quebrou o nariz em nada e (b) havia uma nova lua bastante suspeita no céu.

O campo de Problema de Outra Pessoa é muito mais simples e mais eficaz. Melhor ainda, pode funcionar durante mais de 100 anos usando uma única bateria de lanterna. Isso porque ele conta com a tendência natural das pessoas de não verem nada que não querem, que não estão esperando ou que não podem explicar. Se Effrafax tivesse pintado a montanha de rosa e gerado um simples e econômico campo de Problema de Outra Pessoa sobre ela, então as pessoas teriam passado por ela, teriam andado em torno dela ou mesmo por cima dela e jamais teriam notado que a montanha estava lá. Era exatamente isso que estava acontecendo com a nave de Slartibartfast. Ela não era rosa, mas, se fosse, teria sido o menor de seus problemas visuais, e as pessoas continuariam ignorando-a. O mais extraordinário a respeito dessa nave é que ela se parecia apenas em parte com uma espaçonave, com barbatanas estabilizadoras, foguetes propulsores, escotilhas de emergência, etc., e se parecia muito mais com um pequeno bistrô italiano de pernas para o ar.

Ford e Arthur olharam para ela maravilhados e profundamente ofendidos.

― É, eu sei ― disse Slartibartfast, alcançando-os naquele momento, ofegante e agitado ―, mas há um motivo. Venham, temos que partir. O antigo pesadelo retornou. O

Fim está diante de nós. Temos que ir imediatamente.

― Espero que seja para algum lugar ensolarado ― disse Ford. Ford e Arthur entraram na nave com Slartibartfast. Ficaram tão perplexos com o que viram lá dentro que nem perceberam o que aconteceu em seguida do lado de fora.

Uma terceira nave, desta vez comprida e prateada, desceu sobre o gramado, silenciosamente, suas longas e esguias hastes desdobrando-se em um suave bale tecnológico.

Pousou com suavidade e dela saiu uma pequena rampa. Uma figura alta e cinzaesverdeada saiu lá de dentro, andando rapidamente, e aproximou-se do pequeno grupo de pessoas que estavam no centro do campo cuidando dos feridos do recente e bizarro massacre. Foi afastando as pessoas com uma autoridade calma e controlada, até chegar a um homem que estava deitado em meio a uma poça de sangue, em seus últimos estertores, claramente além das possibilidades da medicina terráquea. A figura ajoelhou-se pacificamente ao seu lado.

― Arthur Philip Deodat? ― perguntou.

O homem, com os olhos tomados por uma terrível confusão, assentiu debilmente.

― Você é um mísero paspalhão imprestável ― sussurrou a criatura. ― Achei que deveria saber disso antes de morrer.


Capítulo 5

Fatos importantes extraídos da História Galáctica, número dois: (Reproduzido do

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Livro de História Galáctica Popular do Siderial Daily Mentioner's.) Desde que esta Galáxia surgiu, vastas civilizações cresceram e desapareceram, cresceram e desapareceram, cresceram e desapareceram tantas vezes que é muito tentador pensar que a vida na Galáxia deve ser (a) similar a um enjôo marítimo, espacial, temporal, histórico ou similar e (b) imbecil.

Capítulo 6

Pareceu a Arthur que todo o céu subitamente se afastara para lhes dar passagem. Pareceu-lhe que os átomos de seu cérebro e os átomos do cosmos estavam fluindo uns através dos outros.

Pareceu-lhe que estava sendo soprado pelo vento do Universo e que o vento era ele. Pareceu-lhe que era um dos pensamentos do Universo e que o Universo era um de seus pensamentos.

Pareceu a quem estava no Lord's Cricket Ground que outro restaurante da região norte de Londres havia surgido e sumido, como freqüentemente ocorria, e que isso era um Problema de Outra Pessoa.

― O que aconteceu? ― murmurou Arthur, muito admirado.

― Decolamos ― disse Slartibartfast.

Arthur ficou sentado, imóvel e comovido, no assento de vôo. Não sabia ao certo se havia ficado enjoado ou religioso.

― Bela máquina ― disse Ford, numa tentativa malsucedida de disfarçar quão impressionado havia ficado com o que a nave de Slartibartfast acabara de fazer ―, pena que a decoração seja tão ruim.

O velho não respondeu imediatamente. Estava olhando para um grupo de instrumentos com a cara de quem está tentando converter graus Fahrenheit para Celsius de cabeça enquanto sua casa está pegando fogo. Então sua face se descontraiu e ele olhou por alguns instantes a enorme tela panorâmica à sua frente, que mostrava uma complexidade espantosa de estrelas fluindo como fios de prata ao redor deles. Seus lábios se moveram como se fosse dizer algo. Subitamente, olhou, tenso, para seus instrumentos, mas depois franziu a testa e sua expressão se fixou. Olhou de volta para a tela. Mediu seu próprio pulso. Franziu ainda mais a testa por alguns instantes, depois relaxou.

― É um erro tentar entender as máquinas ― disse ele ―, apenas me deixam mais preocupado. O que você disse?

― A decoração ― repetiu Ford. ― É lamentável.

― No fundo do coração fundamental da mente e do Universo ― disse Slartibartfast

― há uma razão.

Ford olhou em volta, curioso. Ele realmente achava aquilo uma visão otimista das coisas. O interior da cabine de comando era verde-escuro, vermelho-escuro, marromescuro, entulhado de coisas e com uma iluminação suave. Inexplicavelmente, a semelhança com um bistrô italiano não havia terminado ao cruzarem a escotilha. Pequenos focos de luz delineavam vasos de plantas, azulejos vitrificados e uma multiplicidade de pequenos objetos metálicos. Medonhas garrafas envolvidas em ráfia se escondiam nas sombras. Os instrumentos nos quais Slartibartfast estivera concentrado pareciam ter sido

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montados no fundo de garrafas enfiadas em concreto.

Ford estendeu a mão e tocou o concreto.

Era falso. Plástico. Garrafas falsas enfiadas em concreto falso.

"O fundo do coração fundamental da mente e do Universo que se dane", pensou consigo mesmo, "isso aqui é um lixo." Por outro lado, não podia negar que a nave havia se movido de uma forma que fazia a Coração de Ouro parecer um carrinho de bebê elétrico. Levantou-se de seu assento. Espanou a roupa. Olhou para Arthur, que estava cantarolando baixinho em um canto. Olhou para a tela e não reconheceu nada. Olhou para Slartibartfast.

― Quanto já viajamos?

― Cerca de... ― respondeu Slartibartfast ― cerca de dois terços do caminho através do disco galáctico, eu diria, aproximadamente. Sim, cerca de dois terços, acho.

― É tão estranho ― disse Arthur, baixinho ― que, quanto mais longe e mais rápido viajamos pelo Universo, mais a nossa posição dentro dele pareça ser absolutamente imaterial, e isso nos preencha com um profundo, ou melhor, nos esvazie de um...

― Sim, é muito estranho ― disse Ford. ― Para onde estamos indo?

― Estamos indo ― respondeu Slartibartfast ― confrontar um antigo pesadelo do Universo.

― E onde você pretende nos deixar??

― Vou precisar da ajuda de vocês.

― Difícil. Olhe, há um lugar aonde você pode nos levar para nos divertirmos ―

ainda estou pensando onde, exatamente ― e daí podemos ficar bêbados e ouvir uma música bem diabólica. Peraí, vou achar algo. ― Pegou sua cópia do Guia do Mochileiro das Galáxias e passou os olhos pelo índice, concentrando-se nas partes que tinham a ver com sexo, drogas e rock'n'roll.

― Uma maldição se levantou das névoas do tempo ― disse Slartibartfast.

― É, creio que sim ― disse Ford. ― Ei ― disse, selecionando por acaso uma entrada em particular ―, Eccentrica Gallumbits, você já esteve com ela? A prostituta de três seios de Eroticon 6. Algumas pessoas dizem que suas zonas erógenas começam a uns seis quilômetros de seu corpo. Pessoalmente, discordo, acho que são oito.

― Uma maldição ― disse Slartibartfast ― que irá mergulhar a Galáxia em fogo e destruição e possivelmente levar o Universo a um fim prematuro. Não estou exagerando ―

acrescentou.

― Parece mesmo que a barra vai pesar ― disse Ford ―, então com um pouco de sorte, vou estar suficientemente bêbado para não notar. Aqui ― disse, enfiando o dedo na tela do Guia ― esse seria um lugar realmente devasso para irmos, e acho que é para onde devemos ir. O que você me diz, Arthur? Pare de cantar mantras e preste atenção. Você está

perdendo coisas importantes.

Arthur levantou-se do sofá e sacudiu a cabeça.

― Aonde estamos indo? ― disse.

― Confrontar um antigo pesa...

― Fecha a matraca ― disse Ford. ― Arthur, vamos sair por aí, pela Galáxia, para nos divertir. Você consegue conviver com isso?

― Por que Slartibartfast está tão ansioso? ― perguntou Arthur.

― Não é nada ― disse Ford.

― O Fim de Tudo ― disse Slartibartfast. ― Venham ― acrescentou, com um tom subitamente autoritário ―, há muitas coisas que preciso lhes contar e lhes mostrar. Andou em direção a uma escada em espiral, feita de ferro e pintada de verde, incompreensivelmente colocada no meio da cabine de comando, e começou a subir. Arthur franziu a testa e foi atrás dele.

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Ford jogou o Guia de volta em sua mochila, irritado.

― Meu médico diz que tenho uma glândula de senso de dever malformada, além de uma deficiência natural em fibras morais ― grunhiu para si mesmo ― e portanto estou dispensado de salvar Universos.

Apesar disso, subiu as escadas atrás deles. O que encontraram no andar de cima era simplesmente obtuso, ou pelo menos assim parecia, e Ford sacudiu a cabeça, cobriu o rosto com as mãos e esbarrou em um vaso de plantas, jogando-o contra a parede.

― Esta é a área central de computação ― disse Slartibartfast, impassível ―, onde são realizados todos os cálculos que afetam a nave de alguma forma. É, eu sei com o que isso se parece, mas na verdade, é um complexo mapa topográfico em quatro dimensões de uma série de funções matemáticas altamente complexas.

― Parece mais uma piada ― disse Arthur.

― Eu sei com o que se parece ― disse Slartibartfast, entrando. Exatamente quando ele entrou, Arthur teve uma súbita e vaga sensação do que aquilo podia significar, mas se recusou a acreditar nela. "O Universo não podia funcionar daquela forma, não podia", pensou. "Aquilo", pensou consigo mesmo, "seria tão absurdo quanto... quanto..." E decidiu terminar aí sua linha de raciocínio. Em sua maioria, as coisas realmente absurdas nas quais podia pensar já haviam acontecido.

Aquela era uma delas.

Era uma grande gaiola de vidro, ou uma caixa ― na verdade, um quarto. Dentro havia uma mesa bem longa. Em volta da mesa estavam espalhadas cerca de 12 cadeiras de madeira, do tipo austríacas. Sobre a mesa havia uma toalha quadriculada vermelha e branca, suja, com algumas marcas de cigarro, cada uma das quais, presumivelmente, estava em um local matematicamente determinado com grande precisão. Sobre essa toalha estavam colocados alguns pratos italianos comidos pela metade, cercados por pedaços de pão comidos pela metade e copos de vinho bebidos pela metade, todos incessantemente manuseados por robôs.

Tudo ali era artificial. Os clientes robôs eram atendidos por um garçom robô, um sommelier robô e um maître robô. Os Móveis eram artificiais, a toalha de mesa era artificial e cada um dos pedaços de comida era claramente capaz de exibir todas as características mecânicas de, digamos, um pollo sorpreso, sem de fato ser um.

E todos participavam juntos de uma pequena dança: uma coreografia complexa envolvendo a manipulação de menus talões de pedidos, carteiras, talões de cheques, cartões de crédito, relógios, lápis e guardanapos de papel, que parecia estar o tempo todo beirando o limite da violência, sem nunca chegar a lugar algum.

Slartibartfast entrou apressado e depois pareceu trocar amenidades tranqüilamente com o maître, enquanto um dos clientes robôs, um auto-Rory, escorregou lentamente para baixo da mesa, enquanto mencionava para um rapaz o que pretendia fazer com uma garota. Slartibartfast sentou-se na cadeira que acabara de vagar e deu uma olhada atenta no menu. O ritmo da coreografia pareceu acelerar-se imperceptivelmente. Surgiam discussões e as pessoas tentavam provar coisas usando guardanapos. Gesticulavam ferozmente umas para as outras e tentavam examinar os pedaços de galinha uns dos outros. A mão do garçom começou a mover-se sobre o talão de pedidos muito mais rápido do que qualquer mão humana seria capaz, e depois mais rápido do que um olho humano poderia acompanhar. O ritmo se acelerou.

Logo uma extraordinária e insistente polidez tomou conta do grupo e, segundos depois, pareciam ter atingido um consenso. Uma nova vibração espalhou-se pela nave. Slartibartfast saiu da sala de vidro.

― Bistromática ― disse. ― O maior poder computacional conhecido nos domínios da paraciência. Venham comigo até a Sala de Ilusões Informacionais.

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Slartibartfast passou e eles o seguiram, perplexos.

Capítulo 7

O Propulsor Bistromático é um novo e maravilhoso método de cruzar vastas distâncias interestelares sem todo o perigo envolvido em ficar mexendo com Fatores de Improbabilidade.

A Bistromática em si é apenas uma nova e revolucionária forma de entender o comportamento dos números. Assim como Einstein observou que o tempo não era absoluto, mas algo que dependia do movimento de um observador no espaço, e que o espaço não era absoluto, mas dependia do movimento do observador no tempo, hoje sabemos que os números não são absolutos, mas dependem do movimento do observador nos restaurantes. O primeiro número não-absoluto é o número de pessoas para quem a mesa está

reservada. Ele irá variar no decorrer das primeiras três ligações para o restaurante e depois não apresentará nenhuma relação aparente com o número de pessoas que realmente estarão presentes, ou com o número de pessoas que irão se juntar a elas depois do show, partida, festa, filme, ou ainda com o número de pessoas que irão embora ao ver quem mais apareceu por lá.

O segundo número não-absoluto é a hora real de chegada. Este numero é hoje conhecido como um dos mais bizarros conceitos matemáticos, uma reciproversexclusão, um número cuja existência só pode ser definida como sendo qualquer outra coisa diferente de si mesmo. Em outras palavras, a hora real de chegada é o único momento no tempo no qual é

impossível que qualquer participante do grupo chegue de fato. A recíproversexclusão tem, atualmente, um papel vital em diversos campos da matemática, incluindo a estatística e contabilidade, além de fazer parte das equações básicas usadas na engenharia dos campos de Problema de Outra Pessoa.

O terceiro e mais misterioso não-absolutismo de todos diz respeito à relação entre o número de itens na conta, o valor de cada item e o número de pessoas na mesa, assim como quanto cada uma delas está disposta a pagar. (O número de pessoas que trouxeram algum dinheiro é apenas um subfenômeno desse campo.)

As assombrosas discrepâncias que costumavam ocorrer nesse ponto passaram décadas sem ser estudadas simplesmente porque ninguém as levou a sério. No passado, as pessoas diziam que essas coisas eram causadas pela educação, falta de educação, avareza, desejo de aparecer, emotividade ou simplesmente porque já era tarde, e tudo era esquecido na manhã seguinte.

Nunca foram feitos testes em laboratório, é claro, porque nada disso acontecia nos laboratórios ― pelo menos não em laboratórios de boa reputação. Foi apenas com o surgimento dos computadores de bolso que a espantosa verdade finalmente se tornou evidente. Era a seguinte: Os números escritos em contas de restaurantes dentro dos confins de restaurantes não seguem as mesmas leis que os números escritos em qualquer outro tipo de papel em outros lugares do Universo. Esse fato singelo causou enorme alvoroço no mundo científico. Foi uma revolução completa. Realizaram-se tantas conferências matemáticas em bons restaurantes que as mentes mais brilhantes de toda uma geração morreram de obesidade e doenças cardíacas, retardando os progressos da matemática em alguns anos.

Aos poucos, contudo, as implicações dessa idéia começaram a ser entendidas. No início a coisa toda era muito radical, muito doidona, o tipo de coisa que faria uma pessoa

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normal dizer: "Sim, claro, exatamente o que eu teria dito." Então inventaram algumas frases como "Frameworks de Subjetividade Interativa" e, a partir daí, as pessoas relaxaram e puderam levar adiante a teoria.

Os pequenos grupos de monges que começaram a se reunir nos principais institutos de pesquisa entoando estranhos cânticos dizendo que o Universo era apenas um produto de sua própria imaginação e acabaram recebendo verbas para pesquisa teatral e foram embora.

Capítulo 8

Nas viagens espaciais, vocês sabem ― disse Slartibartfast, enquanto mexia em alguns instrumentos na Sala de Ilusões Informacionais ―, nas viagens espaciais... Parou e deu uma olhada em volta.

A Sala de Ilusões Informacionais era um alívio para os olhos após as monstruosidades da área central de computação. Não havia nada lá. Nenhuma informação, nenhuma ilusão ― apenas eles, as paredes brancas e alguns pequenos instrumentos que deveriam aparentemente ser ligados em algo que Slartibartfast não conseguia encontrar.

― Sim? ― perguntou Arthur. Ele captou o sentido de urgência de Slartibartfast, mas não tinha idéia do que fazer com ele.

― Sim o quê? ― perguntou o velho.

― O que você estava dizendo? Slartibartfast encarou-o.

― Os números ― disse então ― são terríveis. ― Continuou procurando algo. Arthur concordou, com um ar de sabedoria. Depois de algum tempo percebeu que aquilo não o levaria a lugar algum e decidiu que deveria dizer "o quê?" novamente.

― Nas viagens espaciais ― repetiu Slartibartfast ― todos os números são terríveis. Arthur assentiu novamente, olhando em volta para ver se Ford o ajudava, mas Ford estava praticando a arte de ficar ranzinza e se saindo muito bem nisso.

― Estava apenas tentando evitar que você se desse ao trabalho de me perguntar por que todos os cálculos da nave estavam sendo feitos no talão de um garçom ― disse Slartibartfast finalmente, com um suspiro. Arthur não entendeu.

― Por que ― perguntou ele ― todos os cálculos da nave estavam sendo feitos no talão de...

Parou.

Slartibartfast retrucou:

― Porque nas viagens espaciais todos os números são terríveis. Percebeu que não estava conseguindo se fazer entender.

― Preste atenção ― disse. ― No talonário de um garçom, os números mudam o tempo todo. Você já deve ter percebido.

― Bem...

― No talonário de um garçom ― continuou Slartibartfast ―, realidade e irrealidade colidem em um nível tão fundamental que as duas se fundem e qualquer coisa se torna possível, dentro de certos parâmetros.

― Quais?

― E impossível dizer ― disse Slartibartfast. ― Este é um deles. Estranho, mas verdadeiro. Pelo menos eu acho que é estranho ― acrescentou ― e me garantiram que é

verdadeiro.

Ele finalmente localizou na parede o orifício que estava Procurando e inseriu o instrumento que segurava.

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― Não tenham medo ― disse, e subitamente ele mesmo pareceu se assustar com o instrumento, pulando para trás ―, é que...

Não ouviram o que ele disse porque naquele momento a nave piscou e sumiu ao redor deles e uma astronave de combate do tamanho de uma cidade industrial surgiu cortando a na direção deles, disparando seus lasers estelares.

Capítulo 9

Outro mundo, outro dia, outro amanhecer. O primeiro tênue raio de luz matinal apareceu sem alarde.

Muitos bilhões de trilhões de toneladas de núcleos de hidrogênio superaquecidos explodindo se levantaram aos poucos sobre o horizonte e conseguiram parecer pequenos, frios e ligeiramente úmidos.

Há um momento em cada amanhecer no qual a luz parece flutuar e tudo parece mágico. A criação prende a respiração.

O momento passou sem incidentes, como habitualmente ocorre em Squornshellous Zeta.

A névoa aderia à superfície dos pântanos, acinzentando as nissáceas e borrando os altos juncos. Pairava estática como uma respiração presa.

Nada se movia.

Silêncio.

O sol lutou sem convicção com a névoa, tentando gerar um pouco de calor aqui, irradiar um pouco de luz ali, mas claramente aquele dia seria outro penoso percurso através do céu.

Nada se movia.

Novamente silêncio.

Nada se movia.

Silêncio.

Fm Squornshellous Zeta, freqüentemente dias inteiros transcorriam assim, e, de fato, parecia que seria mais um deles. Quatorze horas mais tarde o sol afundou no horizonte oposto desanimado, sentindo que todo o seu esforço fora em vão. Algumas horas depois reapareceu, ajeitou os ombros e começou a galgar o céu novamente. Desta vez, contudo, algo estava acontecendo. Um colchão havia acabado de encontrar um robô. ― Oi, robô ― disse o colchão.

― Bah ― respondeu o robô, continuando com o que estava fazendo, que era se arrastar, penosa e vagarosamente, em um círculo muito pequeno.

― Feliz? ― perguntou o colchão.

O robô parou e lançou um olhar interrogativo para o colchão. Era claramente um colchão muito idiota. O colchão retornou um olhar arregalado.

Depois de calcular, com precisão de dez casas decimais, a duração exata da pausa que mais provavelmente transmitiria um total desprezo por todas as criaturas colchonéticas, o robô continuou a andar em pequenos círculos.

― Poderíamos conversar ― disse o colchão. ― Você gostaria de conversar?

Era um colchão grande e provavelmente de alta qualidade. Pouquíssimas coisas são fabricadas hoje em dia, já que, em um Universo infinitamente grande ― tal como, por exemplo, aquele em que vivemos ―, a maioria das coisas que se possa imaginar e muitas outras coisas, que no geral é preferível não imaginar, crescem em algum lugar.

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(Recentemente foi descoberta uma floresta onde muitas das árvores dão frutos que são chaves de catraca. O ciclo de vida do fruto de chaves de catraca é bem interessante. Uma vez colhido, é necessário guardá-lo dentro de uma gaveta escura e poeirenta na qual possa permanecer esquecido durante anos. Então, uma noite ele eclode, livrando-se de sua casca externa, que se desfaz em pó, e ressurge como um pequeno objeto de metal impossível de ser identificado, com roscas nas duas pontas e uma espécie de sulco e uma espécie de buraco para parafusos. Quando encontrado, esse objeto será jogado fora. Ninguém sabe o que o fruto tem a ganhar com isso. A Natureza, em sua infinita sabedoria possivelmente está trabalhando no assunto.)

Ninguém sabe tampouco o que os colchões têm a ganhar com suas vidas. São criaturas grandes, amigáveis e cheias de molas que levam vidas tranqüilas e pacatas nos pântanos de Squornshellous Zeta. Muitos são capturados, cruelmente mortos, secados, despachados e usados para as pessoas dormirem. Nenhum deles parece se importar com isso e todos se chamam Zem.

― Não ― respondeu Marvin.

― Meu nome ― prosseguiu o colchão ― é Zem. Poderíamos falar um pouco sobre o tempo, talvez.

Marvin fez outra pausa em sua penosa marcha circular.

― O orvalho ― observou ― realmente caiu com um ruído particularmente detestável esta manhã.

Continuou a andar como se aquele ímpeto comunicativo o tivesse inspirado a atingir revigorantes patamares de melancolia e desânimo. Ele arrastou-se obstinadamente. Se tivesse dentes, poderia rangê-los naquele momento. Não tinha. Não podia. O simples ato de se arrastar já dizia tudo.

O colchão flopolou em volta. Só colchões vivos em pântanos são capazes de fazer isso, o que explica por que a palavra não é usada mais freqüentemente. Ele flopolou de forma simpática, movendo uma boa quantidade de água ao fazê-lo. Soprou algumas bolhas na água por diversão. Suas listras azuis e brancas brilharam rapidamente em um raio de sol que, inesperadamente, havia conseguido atravessar a névoa, fazendo com que a criatura se aquecesse por um instante.

Marvin arrastou-se.

Você está pensando em alguma coisa, não é? ― disse o colchão, flupidamente.

― Muito mais do que você seria capaz de imaginar ― disse Marvin, pesaroso.

― Minha capacidade para atividades mentais de todos os tipos é tão ilimitada quanto a infinita imensidão do próprio espaço. Exceto, claro, no que diz respeito à minha capacidade de ser feliz.

Tunc, tunc, prosseguiu ele.

― Minha capacidade para ser feliz ― acrescentou ― poderia ser colocada numa caixa de fósforos, sem tirar os fósforos antes.

O colchão gotejamingou. Este é o ruído feito por um colchão vivo em seu habitat natural, o pântano, quando profundamente tocado por uma história de tragédia pessoal. A palavra também pode significar, de acordo com O Dicionário Maximegalon Ultracompleto de Todas as Línguas Desde Sempre, o ruído feito pelo Lorde High Sanvalvwag de Hollop ao descobrir que havia se esquecido do aniversário de sua mulher pelo segundo ano consecutivo. Já que houve um único Lorde High Sanvalvwag de Hollop e como ele nunca se casou, a palavra só é usada com um sentido negativo ou especulativo, e tem crescido o número de pessoas que acreditam que o Dicionário Maximegalon não vale a frota de caminhões necessária para transportar sua edição microarmazenada. Mais curioso ainda é o fato de que o dicionário omite a palavra "flupidamente", que significa apenas "de forma flúpida".

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O colchão gotejamingou novamente.

― Posso sentir um profundo desalento em seus diodos – ele voluiu (para saber o significado de "voluir", compre uma cópia do Jargão dos Pântanos de Squornshellous em qualquer sebo ou, se preferir, compre o Dicionário Maximegalon Ultracompleto, já que a Universidade de Maximegalon certamente ficaria feliz em se livrar dele e voltar a usar um enorme espaço de seu estacionamento) e isso me deixa triste. Você deveria ser mais colchonesco.

Levamos vidas tranqüilas e pacatas nos pântanos e nos contentamos em flopolar e voluir e observar a umidade com grande flupidez. Alguns de nós são mortos, mas, como todos nos chamamos Zem então nunca sabemos quem foi e, assim, gotejamingamos muito pouco. Por que você está andando em círculos?

― Porque minha perna está com defeito ― respondeu Marvin seco.

― Me parece ― disse o colchão, penalizado ― que é uma perna bem ruinzinha.

― Você está certo ― disse Marvin. ― De fato é.

― Vuum ― respondeu o colchão.

― Espero que sim ― disse Marvin ― e também espero que você ache muito engraçada a idéia de um robô com uma perna artificial. Você deveria contar isso quando encontrar seus amigos Zem e Zem mais tarde. Eles irão achar graça, se os conheço bem, mas obviamente não os conheço, a não ser na exata medida que conheço todas as formas de vida orgânica, ou seja, muito mais do que eu gostaria. Ah, mas a minha vida nada é senão uma caixa de engrenagens sem fim.

Ele continuou estompeando em torno de seu pequeno círculo, em torno de sua fina perna, uma estaca de metal que se arrastava na lama, mas ainda assim parecia emperrada.

― Mas por que você continua a andar em círculos? ― perguntou o colchão.

― Só para deixar isso bem claro ― disse Marvin, que continuou girando.

― Está claro, prezado amigo ― flurbulou o colchão ―, está bem claro.

― Só por mais alguns milhões de anos ― disse Marvin ―, uns poucos milhões. Depois vou tentar andar para trás. Para variar um pouco, entende. O colchão podia sentir, no mais profundo de suas molas, que o robô queria muito que lhe perguntassem há quantos anos marchando daquela forma fútil e infrutífera. Foi o que ele fez, com outra flurbulação silenciosa.

― Há pouco tempo passei da marca de 1,5 milhão de anos ― disse Marvin, aéreo.

― Pergunte-me se em algum momento me sinto chateado, vamos, pergunte-me. O colchão perguntou.

Marvin ignorou a pergunta, apenas se arrastou com mais determinação.

― Fiz um discurso uma vez ― disse ele, do nada, e aparentemente sem qualquer conexão com o assunto. ― Você talvez não entenda por que estou tocando neste assunto, mas é só porque minha mente funciona tão fenomenalmente rápido e sou, em uma estimativa genérica, 30 bilhões de vezes mais inteligente que você. Deixe-me lhe dar um exemplo. Pense em um número, qualquer número.

― Ahn... cinco ― disse o colchão.

― Errado ― respondeu Marvin. ― Você entende agora?

O colchão ficou muito impressionado por isso e percebeu que estava na presença de uma mente invulgar. Ele uilomeou ao longo de todo o seu corpo, gerando pequenas ondulações excitadas ao longo de sua poça coberta por algas.

Glupou.

― Conte-me ― pediu, animado ― sobre o seu discurso, eu adoraria ouvi-lo.

― Foi muito mal recebido ― disse Marvin ―, por uma série de motivos. Eu fiz esse discurso a cerca de um quilômetro e meio naquela direção ― acrescentou, fazendo uma pausa numa tentativa de apontar que resultou num gesto estranho com seu braço que não

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estava exatamente bem. O seu braço que estava melhor era o que estava deprimentemente soldado a seu lado esquerdo.

Estava apontando tão bem quanto podia, e obviamente queria deixar bem claro que aquilo era o melhor que podia fazer através da névoa, sobre os juncos, indicando uma parte do pântano que se parecia exatamente com qualquer outra parte do pântano.

― Ali ― repetiu. ― Eu era uma espécie de celebridade na época. O colchão foi tomado por grande excitação. Nunca tinha ouvido falar que alguém tivesse feito um discurso em Squornshellous Zeta, sobretudo não uma celebridade. Gotas d'água respingaram dele enquanto um tremor de excitação gluriou por suas costas. Ele fez algo que os colchões muito raramente se dão ao trabalho de fazer. Reunindo cada átomo de sua força, ele curvou seu corpo retangular, elevou-o no ar e o manteve tremendo por lá durante alguns segundos enquanto tentava olhar, através da névoa, sobre os juncos, na direção do pântano que havia sido indicada por Marvin, notando, sem nenhum desapontamento, que era exatamente igual a qualquer outra parte do pântano. Foi esforço demais, e ele acabou flogando de volta em sua poça, encharcando Marvin com uma lama fedorenta, musgo e ervas daninhas.

― Eu fui uma celebridade ― prosseguiu o robô em tom monocórdio ― durante um curto período de tempo devido à minha miraculosa escapada (da qual muito me ressinto) de um destino quase tão bom quanto a morte no coração de um sol resplandecente. Você pode perceber, olhando para a minha condição atual ― acrescentou ―, por quão pouco escapei. Fui salvo por um vendedor de ferro-velho, imagine só. Aqui estou, com um cérebro do tamanho de um... ah, deixa pra lá.

Arrastou-se novamente por mais algum tempo.

― Foi ele que me arrumou esta perna. Odiosa, não é? Me vendeu para um Zoológico Mental. Eu era a estrela da exposição. Tinha que ficar sentado em uma caixa e contar a minha história enquanto as pessoas me diziam para me animar e pensar de forma positiva. "Dê um sorriso, robozinho", gritavam eles, "dê uma risada." Nessa hora eu geralmente explica-que, para fazer meu rosto sorrir, levaria algumas horas em uma oficina com um alicate, o que resolvia bem a situação. ― O discurso ― insistiu o colchão. ―

Quero muito ouvir o discurso que você deu no pântano.

― Uma ponte ia ser construída através dos pântanos. Era uma hiperponte ciberestruturada, com centenas de quilômetros de extensão, para carregar carroças iônicas e transportes de cargas por cima do pântano.

― Uma ponte? ― inquirulou o colchão. ― Aqui no pântano?

― Sim, uma ponte ― confirmou Marvin ―, aqui no pântano. A idéia é que ela revitalizasse a economia do Sistema de Squornshellous. Dedicaram todos os recursos da economia do Sistema de Squornshellous para construí-la. E me pediram para inaugurá-la. Pobres tolos.

Uma chuva fina começou a cair através da névoa.

― Lá estava eu na plataforma. Por centenas de quilômetros à minha frente e centenas de quilômetros atrás de mim estendia-se a ponte.

― Ela reluzia? ― perguntou o colchão, entusiasmado.

― Sim, reluzia.

― Atravessava as milhas majestosamente?

― Sim, atravessava as milhas majestosamente.

― Alongava-se como um fio de prata até se tornar invisível em meio à névoa?

― Sim ― disse Marvin. ― Você quer ou não ouvir a história?

― Quero ouvir o seu discurso ― respondeu o colchão.

― Eis o que eu disse. Disse: "Gostaria de dizer que é um grande prazer, uma enorme honra e um privilégio para mim inaugurar esta ponte, mas não posso fazer isso

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porque todos os meus circuitos de falsidade estão fora de ação. Eu odeio desprezo todos vocês. A partir deste momento, declaro esta miserável ciberestrutura aberta aos abusos inimagináveis de todos aqueles que irão petulantemente cruzá-la." Em seguida me conectei aos circuitos de abertura.

Marvin fez uma pausa enquanto se lembrava da ocasião.

O colchão flureou e gluriou. Ele flopolou, glupou e uilomeou de uma forma particularmente flúpida.

― Vuum ― vurfou por fim. ― E foi uma ocasião magnífica?

― Razoavelmente magnífica. A ponte de 1.500 quilômetros em toda a sua extensão, espontaneamente redobrou-se em sua cintilante travessia e submergiu, chorando, no lodo, levando todos junto com ela.

Houve uma triste e terrível pausa neste ponto da conversa, durante a qual a 100 mil pessoas pareceram ter dito "uop" inesperadamente e um time de robôs brancos desceu do céu como sementes de dentes-de-leão esvoaçando pelo vento em formação militar cerrada. Durante um curto e violento momento estavam todos lá, no pântano, arrancando a perna falsa de Marvin e, logo em seguida, estavam de volta em sua nave, que fez "fuop".

― Você entende o tipo de coisa que tenho que aturar? ― disse Marvin para o colchão goberingante.

Então, logo em seguida, os robôs voltaram para outro incidente violento e, desta vez, quando partiram, o colchão estava sozinho no pântano. Ele flopolou em volta, perplexo e assustado. Quase lurglou de medo. Suspendeu a si mesmo para ver por cima dos juncos, mas não havia nada para ver a não ser mais juncos.

Prestou atenção aos sons, mas o único som vindo com o vento era o já familiar ruído de alguns etimologistas semi-enlouquecidos gritando à distância, uns para os outros, através do lodo fedorento.

Capítulo 10

O corpo de Arthur Dent girou.

O Universo se estilhaçou em um milhão de fragmentos reluzentes em volta dele e cada um dos cacos girou silenciosamente pelo vazio, refletindo em sua superfície prateada um único e causticante holocausto de fogo e destruição.

E então a escuridão por trás do Universo explodiu, e cada pedaço de escuridão era a furiosa fumaça do inferno.

E por trás da escuridão por trás do Universo irrompeu o vazio, e por trás do vazio por trás da escuridão por trás do Universo estilhaçado surgiu enfim a sombria figura de um homem imenso proferindo imensas palavras.

― Essas, então ― disse a figura, sentada em uma cadeira imensamente confortável

―, foram as Guerras de Krikkit, a maior devastação que já tomou conta de nossa Galáxia. O

que vocês acabaram de vivenciar...

Slartibartfast passou flutuando e gesticulando.

― É só um documentário ― gritou. ― Essa não é a parte legal. Mil desculpas, estou procurando o botão de rewind...

― ...foi aquilo que bilhões de bilhões de inocentes...

― Em hipótese alguma ― gritou Slartibartfast, flutuando para o outro lado e mexendo furiosamente na coisa que ele havia enfiado na parede da Sala de Ilusões Informacionais e que continuava enfiada lá ― aceitem comprar o que quer que seja agora.

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― ...pessoas, criaturas, seres semelhantes a vocês...

A trilha sonora cresceu. Também a música era imensa com acordes imensos. E por trás do homem, lentamente, três altos pilares começaram a emergir da névoa imensamente turbilhonante.

― ...vivenciaram ou, na maioria dos casos, não foram capazes de vivenciar até o fim. Pensem nisso, meus amigos. Não devemos nunca nos esquecer ― e em breve irei sugerir uma forma de nos ajudar a lembrar para sempre disso ― de que antes das Guerras de Krikkit a Galáxia era um lugar precioso e maravilhoso, uma Galáxia feliz!

A esta altura, a música estava transbordando de imensidão.

― Uma Galáxia feliz, meus amigos, representada pelo símbolo do Portal de Wikkit!

Os três pilares destacavam-se em primeiro plano agora, três pilares com duas traves colocadas horizontalmente sobre eles de uma forma que parecia estupendamente familiar para o cérebro aturdido de Arthur.

― Os três Pilares ― disse triunfalmente o homem. O Pilar de Aço, que representava a Força e o Poder da Galáxia!

Refletores foram acionados e dançavam loucamente para cima e para baixo do pilar da esquerda, claramente feito de aço ou algo muito parecido com aço. A música tonitruou estrondosamente.

― O Pilar de Acrílico ― anunciou o homem ― representando as forças da Ciência e da Razão na Galáxia.

Outros refletores se projetaram exoticamente sobre o pilar transparente à direita, gerando padrões deslumbrantes dentro dele e gerando também um súbito e inexplicável desejo de tomar sorvete no estômago de Arthur.

― E ― bradou a voz ― o Pilar de Madeira, representando... ― nesse ponto sua voz tornou-se suavemente rouca e cheia de sentimento ― as forças da Natureza e da Espiritualidade.

A luzes focaram o pilar central. A música ascendeu destemidamente ao reino da completa indescritibilidade.

― Entre elas estão apoiadas ― retumbou a voz, próxima do auge ― a Trave Dourada da Prosperidade e a Trave Prateada da paz!

Agora a estrutura inteira estava inundada por luzes deslumbrantes, e a música havia, felizmente, ultrapassado em muito os limites da compreensão. No topo dos três pilares estavam assentadas as duas traves lindamente reluzentes.

Parecia haver garotas sentadas nelas, ou talvez fossem anjos. Anjos, contudo, geralmente são representados usando mais roupas.

Subitamente um silêncio dramático percorreu o que presumivelmente era o Cosmos, e as luzes diminuíram.

― Não há um único mundo ― anunciou o homem, com voz de profundo conhecedor do assunto ―, um único mundo civilizado em toda a Galáxia onde este símbolo não seja reverenciado até hoje. Mesmo nos planetas mais primitivos, ele persiste na memória coletiva. Foi isto que as forças de Krikkit destruíram e é isto que atualmente mantém seu planeta trancado até o fim da eternidade.

Com um floreio, o homem fez surgir em suas mãos um modelo do Portal de Wikkit. Era extremamente difícil ter uma noção de escala em meio àquele espetáculo extraordinário, mas o modelo parecia ter quase um metro de altura.

― Esta não é a chave original, é claro. Ela foi, como todos sabem, destruída, jogada nos turbilhonantes zéfiros do contínuo espaço-temporal e perdida para sempre. O que temos aqui é uma réplica minuciosa, feita à mão por hábeis artesãos, carinhosamente manufaturada usando antigos segredos para criar uma lembrança que vocês terão orgulho em guardar, uma lembrança em memória daqueles que caíram, um tributo à Galáxia ― à nossa Galáxia ―,

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em defesa da qual deram suas vidas...

Slartibartfast flutuou novamente nesse ponto.

― Finalmente encontrei ― disse. ― Podemos passar todo esse lixo. Apenas não acenem, só isso.

― Agora, vamos inclinar nossas cabeças em pagamento entoou a voz, antes de dizer tudo de novo, só que bem mais rápido e ao contrário.

As luzes dançaram, os pilares desapareceram, o homem tagarelou consigo mesmo retrocedendo no vazio e o Universo reconstruiu-se com um estalo em torno deles. .

― Pegaram o sentido da coisa? ― perguntou Slartibartfast.

― Estou estupefato ― disse Arthur ― e perplexo.

― Estava dormindo ― disse Ford, que flutuou na frente deles naquele momento. ―

Perdi alguma coisa?

Encontraram-se mais uma vez cambaleando bem rapidamente na beira de um precipício aflitivamente alto. O vento varria seus rostos e percorria uma baía na qual os restos de uma das maiores e mais poderosas frotas de naves de guerra já reunidas na Galáxia estava velozmente se queimando de volta à existência. O céu era de uma cor rosaacinzentada, passando depois para uma cor bastante peculiar e escurecendo até ficar azul e, finalmente, preto. Um turbilhão de fumaça subia com uma rapidez impressionante. Os eventos agora retrocediam quase rápido demais para serem distinguidos e quando, pouco tempo depois, um imenso cruzador estelar afastou-se rapidamente deles, como se tivessem gritado "buuu", só puderam reconhecê-lo porque haviam começado a assistir à projeção naquele ponto.

Agora as coisas passavam depressa demais, um borrão videotáctil que os sacudia e espanava através de séculos de história galáctica, girando, revirando, piscando. O único som era um pequeno sibilar trêmulo.

Periodicamente, em meio à crescente massa de eventos, podiam sentir catástrofes gigantescas, profundos horrores, choques cataclísmicos, todos eles sempre associados a algumas vagens recorrentes, as únicas imagens que surgiam claramente em meio à

avalanche de história: um portal de wicket, uma bolinha vermelha e dura, robôs brancos e duros, além de uma outra coisa menos distinta, algo envolto em sombras e névoa. Mas havia uma outra sensação que surgia claramente dessa estonteante passagem do tempo.

Assim como uma série de cliques, quando acelerados, perdem sua definição individual e, aos poucos, se tornam um tom uniforme e cada vez mais agudo, da mesma forma uma série de impressões individuais foi se transformando numa emoção prolongada que, ao mesmo tempo, não chegava a ser uma emoção. Se fosse uma emoção, era desprovida de qualquer emotividade. Era ódio, um ódio implacável. Era fria, não como o gelo, mas como uma parede. Era impessoal, não como um soco no meio de uma multidão é

impessoal, mas como uma multa de estacionamento emitida por computador é impessoal. E

era mortífera ― novamente, não como uma bala ou uma faca, mas como uma parede de tijolos colocada no meio de uma auto-estrada.

E, da mesma forma como um tom crescente irá mudar seu timbre e adquirir novos harmônicos conforme se torna mais agudo, assim também essa emoção não-emotiva pareceu crescer até tornar-se um grito insuportável, ainda que inaudível, e, subitamente, um grito de culpa e fracasso.

De repente, tudo parou.

Estavam de pé no topo de um monte numa tarde tranqüila.

O sol estava se pondo.

Em volta deles o verde suave dos campos serpenteava gentilmente a perder de vista. Pássaros cantavam suas opiniões a respeito, que, no geral, pareciam ser boas. Um pouco

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mais ao longe podia-se ouvir o som de crianças brincando e, ainda mais ao longe que a aparente fonte deste som, podia-se ver, na primeira escuridão da noite, o contorno de uma pequena cidade.

A cidade era formada por prédios baixos, feitos de pedra branca. Recortava o horizonte de forma suave.

O sol havia se posto quase totalmente.

Surgida do nada, uma música começou a tocar. Slartibartfast apertou um botão e ela parou. Uma voz disse:

― Isso... ― Slartibartfast apertou outro botão e a voz também parou.

― Eu mesmo vou lhes contar essa parte ― disse, suavemente. O lugar era pacífico. Arthur sentia-se feliz. Até mesmo Ford parecia alegre. Caminharam um pouco em direção à

cidade. A Ilusão Informacional de grama era agradável e fofa sob seus pés, e a Ilusão Informacional de flores tinha uma fragrância doce.

Apenas Slartibartfast parecia estar apreensivo e aborrecido.

Ele parou e olhou para cima.

Arthur pensou subitamente que, como a parte onde estavam vinha no final, por assim dizer, ou, mais exatamente, no início de todo o horror que haviam acabado de presenciar de forma borrada, provavelmente algo profundamente desagradável estava para acontecer. Ficou transtornado ao pensar que algo de profundamente desagradável pudesse acontecer em um lugar tão idílico quanto aquele. Também olhou para cima. Não havia nada no céu.

― Eles não vão atacar aqui, vão? ― disse. Sabia que estava apenas andando dentro de uma gravação, mas ainda assim ficou tenso.

― Nada vai atacar aqui ― disse Slartibartfast com uma voz inesperadamente trêmula de emoção. ― Foi aqui que tudo começou. Este é o lugar em si. O planeta Krikkit. Olhou para o céu acima deles.

O céu, de um horizonte ao outro, de leste a oeste, de norte a sul, era total e completamente negro.


Capítulo 11

Estompe, estompe.

R-r-r-r-rrr.

― É um prazer servi-lo.

― Cale-se.

― Obrigado.

Estompe estompe estompe estompe estompe.

R-r-r-r-rrr.

― Obrigado por tornar uma simples porta muito feliz.

― Espero que seus diodos enferrujem.

― Obrigado. Tenha um bom dia.

― Estompe estompe estompe estompe.

R-r-r-r-rrr.

― É um prazer abrir para você...

― Vá se zarcarl

― ...e uma grande satisfação fechar de novo, com a consciência de um trabalho

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bem-feito.

― Já disse para se zarcar!

― Obrigado por ouvir esta mensagem.

Estompe estompe estompe estompe.

― Uop.

Zaphod parou de estompear. Estava estompeando pela Coração de Ouro há dias e, até aquele momento, nenhuma porta tinha dito "uop" para ele. Na verdade, estava bem certo de que nenhuma porta teria dito "uop" agora. Portas, em geral não dizem algo assim. É

muito conciso. Além disso, não havia portas suficientes.

Soou como se 100 mil pessoas tivessem dito "uop", o que o deixava intrigado, já

que era a única pessoa na nave.

Estava escuro. A maioria dos sistemas não-essenciais da nave estavam desligados. Ela estava à deriva em uma área remota da Galáxia, no mais negro nanquim do espaço. Então como 100 mil pessoas iriam até lá para dizer um "uop" totalmente inesperado?

Olhou em volta, para um lado e para o outro do corredor. Tudo estava envolto em trevas. Havia apenas os contornos rosados e fracamente iluminados das portas, que brilhavam no escuro e pulsavam sempre que elas falavam, apesar de tudo que ela já tinha tentado para impedi-las.

As luzes estavam apagadas para evitar que suas cabeças pudessem olhar uma para a outra, porque nenhuma delas era uma visão particularmente atraente no momento, como já

não eram desde que Zaphod cometera o erro de examinar sua alma. Aquilo tinha sido um grande erro. Era tarde da noite, é claro. Tinha sido um dia difícil, é claro.

Uma música suave estava tocando no som da nave, é claro.

Ele estava, é claro, ligeiramente bêbado.

Em outras palavras, todas as condições habituais que levam a um surto de exame da alma estavam presentes. Ainda assim, claramente havia sido um erro. Andando agora, silencioso e solitário, no corredor sombrio, lembrou-se daquele momento e sentiu um frio na espinha. Uma de suas cabeças olhou para um lado, a outra para o outro, e cada qual decidiu que o lado oposto era o caminho a seguir. Estava prestando atenção, mas não havia som algum.

Só tinha havido aquele "uop".

Parecia uma viagem terrivelmente longa para trazer um numero terrivelmente grande de pessoas para dizer uma única palavra. Ficou nervoso e começou a caminhar em direção à ponte.

Ao menos lá se sentiria no controle da situação. Parou de novo. Da forma como se sentia agora, não achava que fosse uma pessoa muito adequada para estar no controle de nada. Lembrando agora daquele momento, o primeiro choque tinha sido a descoberta de que ele realmente tinha uma alma.

De certa forma sempre presumira que tinha uma, já que parecia ter todas as outras coisas, e na verdade tinha até duas de algumas coisas, mas encontrar de fato aquela coisa escondida lá dentro dele havia sido um grande choque.

E ter descoberto, em seguida (este foi o segundo choque), que sua alma não era a coisa fantástica que acreditava ter o direito natural de esperar, sendo um homem de sua posição, o havia chocado novamente.

Então havia pensado a respeito de qual era exatamente sua posição e o novo choque quase fez com que derrubasse seu drinque. Virou o copo rapidamente antes que algo sério pudesse acontecer à bebida. Em seguida tomou um outro drinque, para seguir o primeiro e verificar se estava tudo bem.

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― Liberdade ― disse em voz alta.

Naquele momento, Trillian apareceu na cabine de comando e disse várias coisas entusiásticas a respeito da liberdade.

― Não posso lidar com isso ― respondeu ele, soturno, e enviou um terceiro drinque para averiguar por que o segundo ainda não havia enviado um relatório sobre a situação do Primeiro. Olhou inseguro para as duas Trillians e concluiu que preferia a que estava à direita.

Jogou um drinque garganta abaixo pela outra garganta, penando que este iria encontrar o anterior na junção, onde ambos uniriam forças e fariam com que o segundo tomasse jeito.

Então os três partiriam em busca do primeiro, teriam uma boa conversa com ele e talvez cantassem um pouco também.

Estava em dúvida se o quarto drinque tinha entendido tudo aquilo, portanto mandou descer um quinto para detalhar o plano e um sexto para dar apoio moral.

― Você está bebendo muito ― disse Trillian.

Suas cabeças colidiram enquanto tentavam reunir, em uma única pessoa, as quatro Trillians que estavam vendo. Acabou desistindo e olhou para a tela de navegação. Ficou espantado ao ver que havia um número fenomenal de estrelas.

― Diversão e aventura e coisas exóticas ― murmurou.

― Olha ― disse ela com uma voz simpática, sentando-se ao lado dele ―, é

compreensível que você se sinta um pouco vazio e desnorteado por algum tempo. Espantou-se com ela. Nunca antes havia visto alguém se sentar em seu próprio colo.

― Uau ― disse. E tomou outro drinque.

― Você completou a missão que te envolveu durante quatro anos.

― Ela não me envolveu. Eu procurei evitar ficar envolvido nela.

― Mesmo assim você a concluiu.

Ele resmungou. Aparentemente estavam dando uma grande festa em seu estômago.

― Acho que isso acabou comigo ― disse. ― Aqui estou, Zaphod Beeblebrox, e posso ir a qualquer lugar, posso fazer qualquer coisa. Tenho a melhor nave de todo o espaço, uma garota com quem as coisas parecem estar indo bem...

― Parecem?

― Até onde posso ver. Não sou especialista em relacionamentos pessoais... Trillian levantou as sobrancelhas.

― Sou ― prosseguiu Zaphod ― um grande cara, posso fazer tudo que quiser, só

que não tenho a menor idéia do que seja isto.

Fez uma pausa.

Uma coisa deixou de levar à próxima ― em contradição com o que disse, tomou outro drinque e escorregou desajeitadamente de sua cadeira.

Enquanto ele dormia, Trillian pesquisou algumas coisas na cópia do Guia do Mochileiro das Galáxias que havia na nave. O Guia tinha alguns conselhos a respeito de porres.

― Vá fundo ― dizia o texto ― e boa sorte.

Havia uma referência cruzada para o verbete que falava sobre o tamanho do Universo e como lidar com isso.

Então ela encontrou o verbete sobre Han Wavel, um exótico planeta turístico e um dos prodígios da Galáxia.

Han Wavel é um mundo constituído basicamente de fabulosos hotéis e cassinos ultraluxuosos. Todos formados por erosão natural, provocada pela chuva e pelo vento. As chances de que algo assim aconteça são mais ou menos de um sobre infinito. Pouco se sabe a respeito de como isso aconteceu porque nenhum dos geofísicos, estatísticos

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de probabilidade, meteoroanalistas ou bizarrologistas que gostariam muito de estudar o assunto podem se dar ao luxo de ficar lá.

Incrível, pensou Trillian, e em poucas horas a grande nave branca estava lentamente descendo do céu, iluminada por um sol quente e brilhante, em direção a um espaçoporto recoberto por areia colorida. A nave estava obviamente causando sensação na superfície e Trillian estava se divertindo com isso. Ouviu Zaphod se movendo e assobiando em algum lugar da nave.

― Como você está? ― perguntou pelo intercomunicador.

― Bem ― disse ele alegremente ―, incrivelmente bem.

― Onde você está?

― No banheiro.

― Fazendo o quê?

― Ficando aqui.

Depois de uma ou duas horas tornou-se óbvio que ele realmente pretendia ficar por lá e a nave subiu novamente sem sequer abrir sua escotilha.

― Putz! ― disse Eddie, o computador.

Trillian assentiu pacientemente, batucou com seus dedos algumas vezes e depois pressionou de novo o botão do intercomunicador.

― Acho que diversão obrigatória provavelmente não é algo de que você precise neste momento.

― Provavelmente não ― retrucou Zaphod de algum lugar.

― Acho que uma boa atividade física ajudaria a tirar você de dentro de si mesmo.

― O que você achar eu também acho ― respondeu Zaphod. "Impossibilidades Recreativas" foi um tópico que chamou a atenção de Trillian quando, pouco depois, ela se sentou para dar outra lida no Guia. Enquanto a Coração de Ouro cruzava o espaço a velocidades improváveis em uma direção indeterminada, ela tomava uma xícara de algo impensável preparado pela máquina Nutrimática de bebidas e lia sobre como aprender a voar. O Guia do Mochileiro das Galáxias diz o seguinte a respeito de voar: Há toda uma arte, ele diz, ou melhor, um jeitinho para voar.

O jeitinho consiste em aprender como se jogar no chão e errar. Encontre um belo dia, ele sugere, e experimente.

A primeira parte é fácil.

Ela requer apenas a habilidade de se jogar para a frente, com todo seu peso, e o desprendimento para não se preocupar com o fato de que vai doer. Ou melhor, vai doer se você deixar de errar o chão.

Muitas pessoas deixam de errar o chão e, se estiverem praticando da forma correta, o mais provável é que vão deixar de errar com muita força.

Claramente é o segundo ponto, que diz respeito a errar, que representa a maior dificuldade.

Um dos problemas é que você precisa errar o chão acidentalmente. Não adianta tentar errar o chão de forma deliberada, porque você não irá conseguir. É preciso que sua atenção seja subitamente desviada por outra coisa quando você está a meio caminho, de forma que você não pense mais a respeito de estar caindo, ou a respeito do chão, ou sobre o quanto isso tudo irá doer se você deixar de errar.

É reconhecidamente difícil remover sua atenção dessas três coisas durante a fração de segundo que você tem à sua disposição. O que explica por que muitas pessoas fracassam, bem como a eventual desilusão com esse esporte divertido e espetacular. Contudo, se você tiver a sorte de ficar completamente distraído no momento crucial por, digamos, lindas pernas (tentáculos, pseudópodos, de acordo com o filo e/ou inclinação

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pessoal) ou por uma bomba explodindo por perto, ou por notar subitamente uma espécie muito rara de besouro subindo num galho próximo, então, em sua perplexidade, você irá

errar o chão completamente e ficará flutuando a poucos centímetros dele, de uma forma que irá parecer ligeiramente tola.

Esse é o momento para uma sublime e delicada concentração.

Balance e flutue, flutue e balance.

Ignore todas as considerações a respeito de seu próprio peso e simplesmente deixese flutuar mais alto. Não ouça nada que possam dizer nesse momento porque dificilmente seria algo de útil.

Provavelmente dirão algo como: "Meu Deus, você não pode estar voando!" É de vital importância que você não acredite nisso: do contrário, subitamente estará

certo. Flutue cada vez mais alto.

Tente alguns mergulhos, bem devagar no início, depois deixe-se levar para cima das árvores, sempre respirando pausadamente.

NÃO ACENE PARA NINGUÉM.

Quando você já tiver repetido isso algumas vezes, perceberá que o momento da distração logo se torna cada vez mais fácil de atingir.

Você pode, então, aprender diversas coisas sobre como controlar seu vôo, sua velocidade, como manobrar, etc. O truque está sempre em não pensar muito a fundo naquilo que você quer fazer. Apenas deixe que aconteça, como se fosse algo perfeitamente natural. Você também irá aprender como pousar suavemente, coisa com a qual, com quase toda certeza, você irá se atrapalhar ― e se atrapalhar feio ― em sua primeira tentativa. Há clubes privados de vôo aos quais você pode se juntar e que irão ajudá-lo a atingir esse momento fundamental de distração. Eles contratam pessoas com um físico inacreditável ― ou com opiniões inacreditáveis ―, e essas pessoas pulam de trás de arbustos para exibir seus corpos ― ou suas opiniões ― nos momentos cruciais. Poucos mochileiros de verdade terão dinheiro para se juntar a esses clubes, mas é possível conseguir um emprego temporário em um deles.

Trillian leu isso tudo em detalhes, mas, relutantemente, decidiu que Zaphod realmente não estava no clima certo para tentar voar, ou para caminhar por montanhas, ou para tentar conseguir que um funcionário público de Brantisvogan aceitasse uma notificação de mudança de endereço – estas eram as outras coisas listadas sob o tópico

"Impossibilidades Recreativas".

Ela decidiu então levar a nave até Allosimanius Syneca, um planeta feito de gelo e neve, de uma beleza atordoante e um frio estonteante. A viagem das planícies nevadas de Liska até o pico das Pirâmides de Cristal de Gelo de Sastantua é longa e exaustiva, mesmo com esquis a jato e uma matilha de cães de neve de Syneca, mas a vista lá de cima, uma vista que abrange os Campos de Geleiras de Stin, as reluzentes Montanhas Prismáticas e as longínquas luzes de gelo, etéreas e dançantes, é algo que congela a mente e então, aos poucos, a liberta para horizontes de beleza até então nunca experimentados, e, pessoalmente, Trillian achava que se sentiria bem com essa coisa de ter sua mente libertada aos poucos para horizontes de beleza até então nunca experimentados. Entraram em uma órbita baixa.

A beleza branco-prateada de Allosimanius Syneca desfilava abaixo deles. Zaphod ficou na cama, com uma cabeça enfiada embaixo de um travesseiro enquanto a outra montava quebra-cabeças até tarde.

Trillian assentiu pacientemente mais uma vez, contou até um número bem grande e depois disse a si mesmo que a coisa mais importante agora era fazer com que Zaphod

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falasse.

Tendo desativado todos os robôs sintomáticos da cozinha, preparou a refeição mais fantasticamente deliciosa que ela podia conceber ― carnes sutilmente untadas, frutas perfumadas, queijos de aromas delicados e vinhos finos de Aldebaran. Levou a comida até Zaphod e perguntou-lhe se gostaria de conversar.

― Vá se zarcar! ― foi a resposta.

Trillian assentiu pacientemente para si mesma, contou até número muito maior que o anterior, colocou suavemente a bandeja de lado, foi até a sala do transporte e teleportou-se para fora daquela vida idiota dele.

Ela sequer programou as coordenadas. Não tinha a menor idéia para onde estava indo, apenas foi ― uma fileira de pontinhos flutuando aleatoriamente pelo Universo.

― Qualquer coisa ― disse para si mesma ao sair ― é melhor que isto.

― Também acho ― murmurou Zaphod para si mesmo, depois virou-se e fracassou completamente em dormir.

No dia seguinte, ele andou inquieto pelos corredores na nave, fingindo não estar procurando por ela, apesar de saber que não estava mais lá. Ele ignorou as perguntas insistentes do computador a respeito do que estava acontecendo por lá e acabou conectando uma mordaça eletrônica num par de terminais.

Depois de um tempo, começou a desligar as luzes. Não havia nada para ser visto. Nada iria acontecer.

Deitado na cama, uma noite ― e a noite agora era contínua na nave ―, decidiu tomar jeito e colocar as coisas em perspectiva. Com um movimento rápido, sentou-se e começou a vestir as roupas. Decidiu que, em algum lugar do Universo, deveria haver alguém se sentindo mais desprezível, miserável e abandonado do que ele mesmo e estava determinado a encontrar essa pessoa.

A meio caminho da ponte ocorreu-lhe que poderia ser o Marvin. Então voltou para a cama.

Foi algumas horas depois, enquanto estompeava desconsolado através dos corredores escuros xingando as portas alegres, que ele ouviu dizerem "uop", coisa que o deixou bem nervoso.

Encostou-se, tenso, contra a parede do corredor e franziu o cenho como alguém que tentasse endireitar um saca-rolhas por telecinesia. Pressionou a ponta de seus dedos contra a parede e sentiu uma vibração incomum. Além disso, agora podia ouvir claramente leves ruídos e também podia ouvir de onde estavam vindo ― era da ponte.

― Computador? ― sussurrou.

― Mmmm? ― respondeu o terminal mais próximo, também sussurrando.

― Há mais alguém nesta nave?

― Mmmmmm ― disse o computador?

― Quem é?

― Mmmmmm mmmm mm mmmmmmmm.

Zaphod enfiou uma de suas caras em duas de suas mãos.

― Por Zarquon ― murmurou. Então olhou pelo corredor na direção da entrada da ponte, meio distante, da qual ruídos mais sugestivos estavam vindo e onde estavam situados os terminais amordaçados.

― Computador ― murmurou de novo.

― Mmm?

― Quando eu retirar a mordaça...

― Mmm.

― ...me lembre de dar um soco em minha própria boca.

― Mmmm mmmmm?

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― Qualquer uma. Me diga apenas uma coisa. Uma vez significa sim, duas significa não. É algo perigoso?

― Mmm.

― É?

― Mmm.

― Você não disse "mmm" duas vezes agora?

― Mmm mmm.

Avançou lentamente pelo corredor, como se na verdade estivesse querendo sair correndo na outra direção, o que era verdade.

Estava a dois metros da porta para a ponte de comando quando percebeu, horrorizado, que ela iria ser gentil com ele.

Parou imediatamente. Não havia sido capaz de desligar os circuitos vocais de cortesia das portas.

A porta que levava à ponte estava fora do campo de visão de quem estivesse lá

dentro, por conta da forma fascinantemente recurvada que usaram ao projetar a ponte. Zaphod esperava poder entrar sem ser visto.

Desanimado, apoiou-se novamente contra a parede e disse algumas palavras que deixaram sua outra cabeça bastante chocada.

Deu uma olhadela para o contorno rosado da porta e descobriu que, na escuridão do corredor, podia entrever o tênue Campo Sensor que se estendia para fora, pelo corredor, e avisava à porta quando havia alguém para quem ela deveria se abrir e para quem ela deveria fazer uma alegre e agradável observação.

Pressionou o corpo com força contra a parede e foi se esgueirando em direção à

porta, encolhendo o peito o máximo possível para evitar contato com o perímetro muito, muito fracamente iluminado do campo. Segurou a respiração e parabenizou-se por ter passado os últimos dias jogado na cama, em vez de tentar resolver seus problemas sentimentais na sala de musculação da nave.

Percebeu, então, que teria que dizer algo.

Respirou rapidamente algumas vezes e depois falou tão rápido e tão baixo quanto pôde:

― Porta, se você estiver me ouvindo, diga que sim o mais baixo que puder. O mais baixo que pôde, a porta murmurou: ― Posso ouvi-lo.

― Bom. Preste atenção. Daqui a pouco, vou pedir que se abra. Quando se abrir, não quero que diga que você ficou feliz com isso, certo?

― Certo.

― E também não quero que me diga que eu tornei uma simples porta muito feliz, ou que é um prazer abrir para mim e grande satisfação fechar de novo, com a consciência de um trabalho bem-feito, certo?

― Certo.

― E não quero que me diga para ter um bom dia, entendido?

― Entendido.

― Certo ― disse Zaphod, tensionando o corpo ―, abra, agora. A porta abriu-se em silêncio. Zaphod passou através dela em silêncio. A porta se fechou silenciosamente atrás dele.

― Era assim que o senhor queria, senhor Beeblebrox? ― disse a porta em voz alta.

― Quero que imaginem ― disse Zaphod para o grupo de robôs brancos que se viraram naquele momento para olhar para ele ― que estou segurando uma pistola Zapogun extremamente poderosa.

O silêncio que veio a seguir era intensamente frio e selvagem. Os robôs o examinaram com olhos hediondamente mortiços. Mantiveram-se imóveis. Havia algo

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intensamente macabro em sua aparência, especialmente para Zaphod, que nunca havia visto um deles antes, nem sabia nada a respeito. As Guerras de Krikkit pertenciam ao passado antigo da Galáxia, e Zaphod havia gasto a maioria de suas aulas de história antiga elaborando um plano para transar com a garota que ocupava o cibercubículo ao lado. Uma vez que o computador responsável por suas aulas era parte integral desse plano, ele eventualmente teve todos os seus circuitos de história apagados e substituídos por um conjunto completamente diferente de idéias. Como resultado isso, o computador foi desmontado e enviado para um abrigo para Cibertrastes Degenerados. Ele foi seguido pela garota, que havia inadvertidamente se apaixonado pela pobre máquina, coisa que, por sua vez, resultou em (a) Zaphod nunca ter conseguido nada com ela e (b) ele ter deixado de estudar um período de história antiga que teria um valor inestimável para ele naquele momento.

Zaphod olhou, chocado, para os robôs.

Era impossível explicar a causa, mas seus corpos brancos de curvas perfeitas e reluzentes, pareciam ser a mais perfeita incorporação de uma malignidade calculada e eficaz. Desde seus olhos hediondamente mortiços até seus poderosos pés sem vida, eram claramente o produto perfeito de uma mente que simplesmente desejava matar. Zaphod engoliu em seco tomado pelo medo.

Eles estavam desmantelando parte da parede traseira da ponte e haviam forçado passagem através de alguns dos pontos internos vitais da nave. Em meio ao emaranhado de peças, Zaphod podia ver, com uma sensação ainda maior e mais profunda de choque, que estavam criando um túnel em direção ao próprio núcleo da nave, o coração do Gerador de Improbabilidade que havia sido misteriosamente criado a partir do nada, o Coração de Ouro em si.

O robô que estava mais próximo olhou pra ele de uma forma que sugeria que estava medindo cada minúscula partícula de seu corpo, sua mente e suas habilidades. Quando falou, aquilo que disse pareceu transmitir exatamente isso.

Antes de seguirmos para a parte do que ele realmente disse, vale a pena registrar aqui que Zaphod era o primeiro ser orgânico a ouvir uma dessas criaturas falar em mais de dez bilhões de anos. Se ele tivesse prestado mais atenção em suas aulas de história antiga e menos em seu corpo orgânico, sem dúvida teria ficado mais impressionado com essa honra. A voz do robô era como seu corpo: fria, perfeita e sem vida. Quase chegava a ter um verniz de elegância. Soava tão antiga quanto era.

Ele disse:

― Você de fato está segurando uma pistola Zapogun em sua mão.

Inicialmente, Zaphod não entendeu bem o que ele quis dizer, mas então olhou para sua mão e ficou aliviado ao perceber r que aquilo que encontrara montado em um suporte na parede de fato era o que ele pensava ser.

― Sim ― respondeu em um tom de alívio desdenhoso, o que é bem difícil ―, bem, eu não quis exigir muito de sua imaginação, robô. ― Durante algum tempo ninguém disse nada e Zaphod compreendeu que os robôs obviamente não estavam ali para conversar. Essa parte ficaria por conta dele. ― Por acaso notei que vocês estacionaram a nave de vocês ―

disse, apontando com uma de suas cabeças na direção adequada ― dentro da minha. Não havia como negar isso. Sem o menor respeito por qualquer tipo de comportamento dimensional, haviam simplesmente materializado sua nave precisamente onde queriam que ela ficasse. Isso significava que estava entrelaçada através da Coração de Ouro como se não fossem nada além de dois pentes.

Novamente não responderam nada, e Zaphod pensou que a conversa poderia ganhar um pouco de dinamismo se ele transformasse as suas falas em perguntas.

― ...não é verdade? ― acrescentou.

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― Sim ― respondeu o robô.

― Ah. Certo ― disse Zaphod. ― Então o que vocês, meus chapas, estão fazendo por aqui?

Silêncio.

― Robôs ― disse Zaphod ―, o que vocês estão fazendo por aqui?

― Viemos ― respondeu o robô ― em busca da Trave de Ouro. Zaphod assentiu. Sacudiu a arma, indicando que gostaria de informações.

O robô pareceu entender o gesto.

― A Trave de Ouro é parte da chave que buscamos prosseguiu ― para libertar nossos Mestres de Krikkit.

Zaphod assentiu novamente. Sacudiu a arma de novo.

― A Chave ― prosseguiu o robô, indiferente ― foi desintegrada no espaço e no tempo. A Trave de Ouro está embutida no dispositivo que impulsiona sua nave. Será usada para reconstituir a Chave. Nossos Mestres serão libertados. O Reajuste Universal irá continuar.

Zaphod assentiu mais uma vez.

― Do que você está falando? ― perguntou.

A face totalmente inexpressiva do robô pareceu ser atravessada por um leve pesar. Ele parecia estar achando aquela conversa deprimente.

― Aniquilação ― disse. ― Procuramos a Chave ― repetiu ― e já temos o Pilar de Madeira, o Pilar de Aço e o Pilar de Acrílico. Mais um pouco e teremos o Pilar de Ouro...

― Não, não terão.

― Teremos ― declarou o robô.

― Não terão não. Ele faz minha nave funcionar.

― Mais um pouco ― repetiu o robô, pacientemente ― e teremos o Pilar de Ouro...

― Não terão ― disse Zaphod.

― E depois temos que ir ― disse o robô, absolutamente sério ― a uma festa.

― Ah ― disse Zaphod, surpreso. ― Posso ir também?

― Não ― disse o robô. ― Vamos atirar em você.

― É mesmo? ― disse Zaphod, sacudindo sua arma.

― Sim ― disse o robô, e atiraram nele.

Zaphod ficou tão surpreso que tiveram de atirar de novo antes que ele caísse.

Capítulo 12

― Shhh ― fez Slartibartfast. ― Ouçam e observem.

A noite havia caído no antigo planeta Krikkit. O céu estava escuro e vazio. A única luz provinha da cidade vizinha, a partir da qual sons pacíficos e amigáveis vagavam suavemente pela brisa. Estavam de pé sob uma árvore que exalava odores inebriantes. Arthur agachou-se para sentir a Ilusão Informacional do solo e da grama. Pegou um pouco de terra e deixou cair entre seus dedos. O solo parecia denso e rico, a grama tinha vigor. Era difícil evitar a impressão de que aquele lugar era absolutamente maravilhoso de todas as formas.

Contudo, o céu era vazio, e Arthur tinha a impressão de que ele transmitia uma certa frieza à paisagem que, embora não pudesse ser vista no momento, era idílica. Supôs, entretanto, que fosse apenas questão de hábito.

Sentiu um cutucão no seu ombro e olhou para cima. Slartibartfast estava lhe

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mostrando, em silêncio, algo que vinha descendo do outro lado da colina. Ele olhou e pôde perceber luzes distantes que serpenteavam, movendo-se devagar na direção deles. Quando chegaram mais perto, pôde ouvir os sons também, e logo as luzes e sons se transformaram em um pequeno grupo de pessoas retornando para casa, vindo das colinas e dirigindo-se à cidade.

Passaram andando bem perto dos observadores sob a árvore com suas tochas balançando e projetando focos suaves de luz que dançavam sobre as árvores e a grama. Estavam tagarelando alegremente e cantando uma música que falava sobre o quão maravilhoso aquilo era, sobre como estavam felizes, como gostavam de trabalhar nas fazendas e como era bom voltar para suas casas e ver as mulheres e os filhos, com um refrão animado que dizia o quão docemente perfumadas as flores eram naquela época do ano, e também que era uma pena que o cachorro, que gostava tanto deles, tivesse morrido. Arthur quase podia imaginar Paul McCartney sentado, com seus pés diante da lareira no entardecer, cantarolando aquilo para Linda e pensando no que compraria com os royalties ―

provavelmente Essex.

― Os Mestres de Krikkit ― sussurrou Slartibartfast em tom sepulcral. Essa observação causou em Arthur uma breve confusão, tendo chegado tão rapidamente após seus próprios pensamentos sobre Essex. Então a lógica da situação se impôs em sua mente dispersa e descobriu que continuava sem entender o que o velho queria dizer.

― O quê? ― perguntou.

― Os Mestres de Krikkit ― repetiu Slartibartfast e, se o tom anterior foi sepulcral, desta vez ele soou como alguém que está com bronquite no Hades. Arthur examinou o grupo e tentou extrair algum sentido das poucas informações que tinha à disposição até o momento.

As pessoas do grupo eram claramente alienígenas por pequenos detalhes, como o fato de parecerem um pouco altas, magras, de feições duras e quase tão pálidas que se podia dizer brancas. Fora isso, pareciam muito agradáveis. Bem, talvez fossem um pouco esquisitonas e talvez não fossem pessoas com quem se gostaria de fazer uma longa viagem de ônibus, mas o ponto é que, se, de alguma forma, se desviavam de serem pessoas boas e honestas, era por serem legais em excesso e não o contrário. Então por que toda essa constrição pulmonar de Slartibartfast, que parecia mais adequada a um comercial de rádio para um daqueles filmes de terror asquerosos a respeito de operadores de serras elétricas que levavam trabalho para fazer em casa à noite?

Essa questão do Krikkit também era complexa. Ele ainda não tinha conseguido fazer a ponte entre o que conhecia como críquete e aquilo que... Slartibartfast interrompeu os pensamentos de Arthur nesse ponto, como se percebesse o que o outro estava pensando.

― O jogo que você conhece como críquete ― disse, com uma voz que parecia ainda vagar por subterrâneos ― é apenas uma dessas peculiaridades da memória racial, capaz de manter algumas imagens vivas na mente séculos após seu verdadeiro sentido ter se perdido nas névoas do tempo. De todas as raças da Galáxia, apenas os ingleses seriam capazes de reviver a memória da mais terrível das guerras que já cindiram o Universo e transformá-la naquilo que, lamento dizer, é visto como um jogo incompreensivelmente chato e sem sentido.

― Eu até gosto dele ― acrescentou ―, mas, aos olhos de muitos, vocês foram inadvertidamente culpados de um grotesco mau gosto. Aquela parte da bolinha vermelha acertando o wicket é particularmente cruel.

― Hum ― disse Arthur, franzindo o rosto de forma reflexiva para indicar que suas sinapses cognitivas estavam lidando com aquilo da melhor forma possível. ― Hum.

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― E estes ― disse Slartibartfast, retornando a seu tom criptogural e apontando para o grupo de homens de Krikkit que passou por eles ― são os que começaram tudo, e tudo irá

começar hoje à noite. Venham, vamos segui-los para ver o que vem a seguir. Saíram de baixo da árvore e seguiram o grupo animado longo da trilha escura pela colina. Seus instintos naturalmente diziam para que se movessem furtivamente e em silêncio atrás de suas presas. Contudo, como estavam apenas andando em meio uma Ilusão Informacional, poderiam estar tocando tuba pintados de azul sem problema algum, já que ninguém iria notar.

Arthur observou que alguns deles tinham passado a cantar uma outra música. Chegava até eles carregada pela suave brisa da noite e era uma balada romântica e doce que permitiria a Paul McCartney comprar Kent e Sussex, além de fazer uma boa oferta por Hampshire.

― Você certamente sabe ― disse Slartibartfast, virando-se para Ford ― o que está

para acontecer, não?

― Eu? ― disse Ford. ― Não.

― Você não estudou História Antiga da Galáxia quando era jovem?

― Eu ficava no cibercubículo atrás de Zaphod ― disse Ford ―, era impossível me concentrar. O que não significa que não tenha aprendido algumas coisas muito impressionantes.

Nesse momento, Arthur notou um detalhe curioso naquela canção. Os oito compassos do meio ― que fariam com que Paul se consolidasse em Winchester e olhasse com interesse sobre o Test Valley chegando até as ricas terras de New Forest logo a seguir

― tinham uma letra peculiar. Quem escreveu a canção falava sobre encontrar-se com uma garota, mas não dizia "sob o luar" ou "sob as estrelas", e sim "sobre a grama". Aquilo soava um pouco prosaico para Arthur.

Então ele olhou novamente para o céu, desconcertantemente preto, e teve a sensação de que havia uma questão importante aí ― se ao menos pudesse definir qual era. A sensação era a de estar sozinho no Universo, que foi o que ele disse para os outros.

― Não ― disse Slartibartfast, apressando ligeiramente o passo ― o povo de Krikkit nunca pensou “Estamos sozinhos no Universo”. Eles estão cercados por uma enorme Nuvem de Poeira, entende? Um único sol com um único mundo e estão na extremidade leste da Galáxia. Por causa da Nuvem de Poeira nunca houve nada para ser visto no céu. Durante a noite é completamente escuro.

Durante o dia há o sol, mas não é possível olhar diretamente para o sol, então eles não olham. Quase não percebem que há um céu. É como se tivessem um ponto cego que se estende 180 graus, de um horizonte a outro.

― O único motivo pelo qual nunca pensaram "Estamos sozinhos no Universo" é

porque, até esta noite, eles sequer sabiam que há um Universo. Ao menos não até esta noite. Continuou andando, deixando suas palavras reverberando no ar atrás de si.

― Imagine como seria nem mesmo ter pensado "Estamos sós", simplesmente porque você nunca houvesse pensado que havia outra possibilidade. Andou novamente

― Creio que seria apavorante ― acrescentou.

Enquanto falava, começaram a ouvir um ruído agudo de algo muito alto, cortando o céu sem estrelas acima deles. Olharam para cima, preocupados, mas não conseguiram ver nada num primeiro momento.

Então Arthur notou que o grupo à sua frente também havia ouvido o ruído, mas ninguém sabia muito como agir. Estavam olhando em volta, confusos, para a esquerda, para a direita, Para a frente, para trás e até mesmo para o chão. Sequer penaram em olhar para cima.

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A profundidade do choque e do horror que demonstraram logo em seguida, quando os destroços em chamas de uma espaçonave desceram do céu com um estrondo, chocandose contra o solo cerca de um quilômetro à frente, era algo que só podia ser entendido por quem estava lá.

Alguns falam com admiração da Coração de Ouro, outros da Nave Estelar Bistromática.

Muitos falam, com toda razão, da lendária e gigantesca Espaçonave Titanic, uma majestosa e luxuosa nave de cruzeiro lançada dos grandes estaleiros nos complexos de asteróides de Artifactovol há centenas de anos.

De infinita beleza, estonteantemente enorme e equipada com mais diversões do que qualquer outra nave daquilo que hoje ainda nos resta da História, teve o azar de ser construída logo no início das pesquisas em Física da Improbabilidade muito antes que este difícil ramo do saber fosse completamente ― ou ao menos minimamente ― compreendido. Os projetistas e engenheiros decidiram, em sua inocência, construir um protótipo de Campo de Improbabilidade na nave, cujo propósito seria, supostamente, o de assegurar que fosse Infinitamente Improvável que qualquer coisa desse errado em qualquer parte da nave. Não perceberam que, por conta da natureza quase-recíproca e circular de todos os cálculos de Improbabilidade, qualquer coisa que fosse Infinitamente Improvável muito possivelmente aconteceria quase instantaneamente.

A Espaçonave Titanic era uma visão incrivelmente bela, atracada como uma Baleia Megavoid arcturiana prateada entre o tracejado laser dos guindastes de construção, uma nuvem brilhante de agulhas de luz sobressaindo-se contra a profunda escuridão do espaço interestelar. Entretanto, ao ser lançada, não conseguiu nem mesmo completar sua primeira mensagem de rádio ― um S.O.S. ― antes de sofrer um súbito e fortuito colapso total de existência.

Ainda assim, o mesmo evento que demonstrou a desastrosa falha de uma ciência em sua infância também testemunhou a apoteose de outra ciência. Foi provado, de forma definitiva que o número de pessoas assistindo à cobertura na TV 3D do lançamento era maior do que o número de pessoas que existiam de fato na época ― algo que é hoje reconhecido como a maior façanha de todos os tempos na ciência da pesquisa de audiência. Outro evento espetacular da mídia naquela época foi o fato a estrela Ysllodins ter se tornado uma supernova poucas horas depois. Ysllodins é a estrela ao redor da qual a maioria dos grandes agentes de seguro vive ou, melhor dizendo, vivia.

Ainda assim, enquanto essas espaçonaves, assim como outras famosas que vêm à

mente, como os Cruzadores da Frota Galáctica ― o GSS Daring, o GSS Audacy e o GSS

Suicidal Insanity ―, são mencionadas com reverência, entusiasmo, afeto, admiração, lástima, inveja, ressentimento ― e todas as emoções mais comumente conhecidas ―, aquela que em geral evoca o mais sincero espanto é a Krikkit One, a primeira espaçonave construída pelo povo de Krikkit.

Não que fosse uma nave fantástica. Não era.

Era uma pilha insana de sucata amontoada. Parecia ter sido montada no quintal de alguém, e na verdade foi exatamente em um quintal que ela foi montada. O que era fantástico a respeito daquela nave não é que houvesse sido bem construída (não foi), mas simplesmente que houvesse sido construída. O tempo decorrido entre o momento que o povo de Krikkit descobriu que havia algo chamado "espaço" e o lançamento de sua primeira nave foi de quase um ano.

Ford Prefect estava profundamente aliviado, enquanto afivelava o cinto, por aquela ser apenas outra Ilusão Informacional e portanto ele estar em segurança. Na vida real, aquela não era uma nave na qual ele colocaria os pés, nem por todo o saquê da China. Uma das expressões que lhe vinham à mente era

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"Completamente desconjuntada". A outra expressão era “Posso sair daqui?”.

― Essa coisa vai mesmo voar? ― disse Arthur, olhando com desconfiança para as tubulações e o cabeamento primitivos que entulhavam o interior da nave. Slartibartfast lhe assegurou que aquilo iria voar, que estavam perfeitamente seguros e que tudo seria extremamente instrutivo e nada desconfortável. Ford e Arthur decidiram relaxar e ficar angustiados numa boa.

― Por que não ― disse Ford ― pirar?

Na frente deles estavam os três pilotos que, naturalmente não percebiam a presença deles pelo simples motivo de não estarem realmente lá. Tinham participado da construção da nave. Estiveram na trilha da colina naquela noite cantando suas músicas profundamente comoventes. Suas mentes haviam sido ligeiramente reviradas pela colisão da nave alienígena. Passaram semanas revirando cada minúsculo segredo dos destroços daquela nave incendiada, tudo isso enquanto cantarolavam melodiosas cantigas sobre revirar naves espaciais.

Depois haviam construído sua própria nave e lá estava ela. Aquela era a sua nave e no momento estavam cantarolando sobre isso também, expressando a dupla alegria de ter realizado e de possuir algo. O refrão era tocante e falava sobre a tristeza de que seu trabalho os tivesse obrigado a passar tanto tempo na garagem, longe de suas mulheres e filhos, que sentiram muita falta deles mas sempre os mantiveram alegres contando-lhes como o cachorrinho estava crescendo, saudável.

Pow!, decolaram.

Cruzaram o céu como uma nave que sabe exatamente o que está fazendo.

― Não é possível ― disse Ford, um pouco depois de terem se recuperado do choque da aceleração, enquanto subiam para além da atmosfera do planeta ―, não é

possível ― repetiu ― que alguém possa projetar e construir uma nave destas em um ano, não importa o quão motivados estivessem. Não acredito. Mesmo que me provem, não acredito. ― Sacudiu a cabeça, pensativo, e olhou por uma escotilha para o vazio do lado de fora. Por algum tempo nada aconteceu, e Slartibartfast apertou a tecla de avanço rápido para prosseguirem.

Muito rapidamente, então, chegaram até o perímetro interno da Nuvem de Poeira, oca e esférica, que circundava seu sol e seu planeta, ocupando a próxima órbita. Foi como se houvesse uma mudança gradual na textura e consistência do espaço. A escuridão parecia agora estar sendo arranhada e rasgada conforme passavam. Era uma escuridão muito fria, um vácuo pesado; era a escuridão do céu da noite de Krikkit. Sua frieza e seu peso e seu vazio aos poucos se infiltraram no coração de Arthur e ele podia sentir nitidamente os sentimentos dos pilotos de Krikkit que flutuavam no ar como uma potente carga estática. Estavam agora no próprio limite do conhecimento histórico de sua raça. Era este o ponto além do qual nenhum deles havia especulado, ou sequer tomado conhecimento de que havia algo sobre o qual especular.

A escuridão da nuvem esbofeteava a nave. Lá dentro havia apenas o silêncio da história. Sua missão histórica era a de descobrir se havia algo ou algum lugar do outro lado do céu de onde a espaçonave destroçada pudesse ter vindo. Um outro mundo, talvez, por mais estranho e incompreensível que esse pensamento fosse para as mentes fechadas daqueles que viviam sob o céu de Krikkit.

A história estava se preparando para desfechar outro duro golpe. Em volta, a escuridão continuava arranhando-os, aquela escuridão vazia e envolvente. Parecia estar cada vez mais próxima, cada vez mais densa, cada vez mais pesada. E subitamente se desfez.

Voaram para além dos confins da nuvem.

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Viram as maravilhosas jóias da noite em sua infinita poeira e suas mentes zumbiam de medo.

Permaneceram voando por mais algum tempo, imóveis contra a imensidão estrelada da Galáxia, também ela imóvel contra a imensidão do Universo. Depois fizeram meia-volta.

― Isso não pode ficar aí ― disseram os homens de Krikkit enquanto navegavam para casa.

No caminho de volta entoaram diversas canções que ponderavam sobre paz, justiça, moral, cultura, esportes vida em família e o aniquilamento de todas as outras formas de vida.


Capítulo 13

Agora vocês compreendem ― disse Slartibartfast, mexendo devagar seu café

artificialmente preparado e, ao fazê-lo, mexendo também as interfaces turbilhonantes entre números reais e irreais, entre as percepções interativas da mente e do Universo, gerando, dessa forma, as matrizes reestruturadas de uma subjetividade implicitamente redobrada que permitia sua nave redefinir o próprio conceito de tempo e espaço ― como foi.

― Sim ― disse Arthur.

― Sim ― disse Ford.

― O que eu faço ― disse Arthur ― com este pedaço de galinha? Slartibartfast olhou para ele seriamente.

― Brinque com ele ― disse ―, brinque com ele. Pegou um de seus pedaços e mostrou-lhe o que fazer. Arthur imitou-o e pôde sentir o ligeiro formigamento de uma função matemática perpassando a coxa de galinha enquanto se movia quadridimensionalmente através daquilo que Slartibartfast havia lhe dito ser um espaço de cinco dimensões.

― De um dia para o outro ― disse Slartibartfast ― toda a população de Krikkit deixou de ser um grupo de encantadoras, agradáveis, inteligentes...

― ...e esquisitonas...

― ...pessoas comuns ― disse Slartibartfast ― para se tornar grupo de encantadoras, agradáveis, inteligentes...

― ...e esquisitonas...

― ...pessoas xenófobas e maníacas. A ideia de que havia um Universo não se enquadrava em sua visão de mundo, digam assim. Não podiam lidar com ele. Então, de forma encantadora, agradável e inteligente ― até mesmo esquisitona, já

que você insiste ―, decidiram destruir o Universo. Qual o problema agora?

― Não gostei muito do vinho ― disse Arthur, cheirando-o.

― Mande devolver. Tudo faz parte da matemática da coisa. Arthur devolveu o vinho. Não gostou muito da topografia do sorriso do garçom, mas ele nunca gostara de gráficos mesmo.

― Para onde estamos indo? ― perguntou Ford.

― De volta para a Sala de Ilusões Informacionais ― disse Slartibartfast, levantando-se e limpando a boca com a representação matemática de um guardanapo de papel ― para assistirmos à segunda parte.


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Capítulo 14

O povo de Krikkit ― disse Sua Altíssima Supremacia Judicial, o Magistrado Pag, Presidente CIMR (Culto, Imparcial e Muitíssimo Relaxado) do Conselho de Juizes no Tribunal de Crimes da Guerra de Krikkit ― é, puxa, vocês, sabem, são apenas um bando de caras muito legais, não é, que estavam apenas querendo matar todo mundo. Muitas vezes é

exatamente como me sinto pela manhã. Que merda. Bem ― prosseguiu, colocando seus pés em cima do banquinho à sua frente e fazendo uma pausa para catar um fiozinho solto em seu Chinelo de Praia Cerimonial ―, não são pessoas com quem se deseje compartilhar uma Galáxia.

Era verdade.

O ataque de Krikkit contra a Galáxia havia sido formidável. Milhares e milhares de imensas naves de guerra de Krikkit haviam saído subitamente do hiperespaço e atacado simultaneamente milhares e milhares de planetas centrais, pegando Primeiro suprimentos materiais vitais para a construção da Próxima leva e depois calmamente aniquilando os planetas.

A Galáxia, que naquela época passava por um período de grande paz e prosperidade, ficou atordoada como um homem sendo assaltado em um pasto.

― Quero dizer ― continuou o Magistrado Pag, olhando em volta da imensa e ultramoderna (isso fora há dez bilhões de anos, quando "ultramoderno" significava aço escovado e concreto em profusão) sala do tribunal ―, esses caras são totalmente obsessivos. Aquilo também era verdade, e era a única explicação que já tinham conseguido formular para a velocidade inimaginável com a qual o povo de Krikkit havia perseguido seu novo e único propósito ― a destruição de qualquer coisa que não fosse de Krikkit. Também era a única explicação para a espantosa velocidade com que tinham compreendido toda a hipertecnologia necessária para construir milhares de espaçonaves e milhões de robôs brancos mortíferos.

Os robôs haviam aterrorizado profundamente todos aqueles que os encontraram, muito embora, na maioria dos casos, esse terror tivesse uma vida extremamente curta, assim como a vida da pessoa aterrorizada. Eram temíveis e cruéis máquinas de guerra voadoras com um único propósito. Traziam consigo terríveis bastões de guerra multifuncionais que, quando erguidos de uma forma, destruíam prédios e, quando erguidos de outra forma, disparavam fulgurantes Raios Zapogun Omnidestrutivos; erguidos de uma terceira forma, lançavam um pavoroso arsenal de granadas, que iam desde pequenos dispositivos incendiários até Dispositivos Hipernucleares Maxi-Slorta capazes de aniquilar uma estrela das grandes. O simples ato de bater nas granadas com os bastões de guerra fazia com que as granadas se ativassem e as lançavam, com fenomenal precisão, a distâncias que iam de alguns metros a centenas de milhares de quilómetros.

― Bem ― disse novamente o Magistrado Pag ―, então fomos nós que vencemos.

― Fez uma pausa e mastigou um chiclete. ― Vencemos ― repetiu ―, mas não chega a ser um grande feito. Afinal, temos toda uma galáxia de tamanho médio contra um pequeno mundo... e quanto tempo levamos? Oficial de Justiça?

― Meritíssimo? ― disse o homem de aparência austera, vestido de preto, levantando-se.

― Quanto tempo, rapaz?

― É um pouco difícil, Meritíssimo, dizer com exatidão. A distância e o tempo...

― Relaxe, rapaz, chute um número.

― É difícil chutar um número, Meritíssimo, em um assunto tão...

― Vamos, coragem, desembucha.

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O Oficial de Justiça piscou. Claramente, como a maioria dos que trabalhavam no Judiciário, achava que o Magistrado Pag [também conhecido pessoalmente como Zipo Bibrok 5 x IO8, inexplicavelmente) era uma figura deplorável. Era obviamente grosseiro e não sabia se portar. Parecia pensar que o fato de possuir o cérebro jurídico mais brilhante jamais conhecido lhe dava o direito de se comportar como bem entendesse e infelizmente parecia estar correto.

― É, hum, bem, Meritíssimo, de forma muito aproximada, uns dois mil anos

― murmurou o Oficial, descontente.

― E quantos carinhas foram detonados?

― Dois grilhões, Meritíssimo ― o Oficial de Justiça sentou-se. Uma foto de seu hidrospectro naquele momento teria revelado que estava fumegando levemente. O Magistrado Pag olhou mais uma vez para o tribunal, no qual estavam reunidos centenas dos mais altos oficiais de toda a administração galáctica, todos eles em uniformes ou corpos de gala, dependendo do metabolismo e costumes locais. Atrás de uma parede de Cristal Blindado AntiZap havia um grupo de representantes do povo de Krikkit, olhando com um desdém calmo e polido para todos os alienígenas ali reunidos a fim de julgá-los. Aquela era a ocasião mais importante da história do Judiciário, e o Magistrado Pag sabia disso. Tirou o chiclete da boca e colou-o embaixo de sua cadeira.

― É um montão de cadáveres ― disse, em tom de voz

O silêncio desconfortável que perpassou o tribunal parecia indicar que todos concordavam.

― Então, como eu disse, são um bando de caras legais, ma não o tipo de gente com quem desejemos compartilhar Galáxia, sobretudo não se eles forem continuar com isso, se não aprenderem a relaxar um pouco. Quero dizer, vamos todos continuar tensos, não é?

Pow, pow, pow ― quando vão nos atacar de novo?

Não há a menor chance de coexistência pacífica, não é? Alguém pode me trazer água, por favor?

Sentou-se e bebericou, refletindo.

― Tudo bem ― disse ―, ouçam-me, ouçam-me. É que, assim esses caras, vocês sabem, têm direito à visão deles do Universo. E, de acordo com essa visão, imposta pelo Universo, correto, eles agiram certo. Parece louco, mas vocês têm que concordar. Eles acreditam em...

Consultou um pedaço de papel que tirou do bolso de trás de seu jeans judicial.

― Acreditam na "paz, justiça, moral, cultura, esporte, vida familiar e na aniquilação de todas as outras formas de vida".

Deu de ombros.

― Já ouvi coisas bem piores. Coçou o saco de forma pensativa.

― Freeeow ― disse. Tomou outro gole de água, depois colocou-a contra a luz e olhou-a intensamente, enquanto girava o copo.

― Ei, tem alguma coisa nesta água? ― perguntou.

― Ahn, não, Meritíssimo ― disse nervosamente o serventuário que havia trazido a água.

― Então leve-a ― retrucou o Magistrado ― e coloque algo dentro dela. Tive uma ideia.

Afastou o copo e inclinou-se para a frente.

― Ouçam-me, ouçam-me todos ― disse.

Sua brilhante solução era a seguinte:

O planeta de Krikkit deveria ser trancado, por toda a eternidade, em um envoltório de Tempolento, dentro do qual a vida continuaria quase infinitamente lenta. Toda luz em

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torno do envoltório seria desviada, de forma que ele permanecesse invisível e impenetrável. Escapar do envoltório seria completamente impossível, a menos que fosse aberto do lado de fora. Quando o restante do Universo chegasse ao derradeiro fim, quando toda a criação emitisse seu último suspiro (claro que isso foi antes de se descobrir que o fim do Universo seria um fantástico negócio para a área de culinária e restaurantes) e a vida e a matéria deixassem de existir, então o planeta Krikkit e seu sol emergiriam do envoltório de Tempolento para continuar sua existência solitária, como desejavam, no crepúsculo do vazio universal.

A Fechadura ficaria em um asteróide colocado em órbita lenta ao redor do envoltório.

Sua chave seria o símbolo da Galáxia ― o Portal de Wikkit.

Quando os aplausos no tribunal finalmente cessaram, o Magistrado Pag já estava no Chuveiro Sensormático com uma bela participante do júri, para a qual havia mandado um bilhete meia hora antes.

Capítulo 15

Dois meses mais tarde, Zipo Bibrok 5 x IO8 havia transformado seus jeans do Estado Galáctico em bermudas e estava gastando parte dos enormes honorários que cobrava por seus julgamentos deitado em uma praia de areia de pedras preciosas, e aquela mesma bela participante do júri estava massageando suas costas com Essência de Qualactina. Ela era uma garota soolfiniana, vinda de trás dos Neblimundos de Yaga. Sua pele parecia seda de limão e ela se interessava profundamente por corpos jurídicos.

― Você ouviu o noticiário?

― Aaaiiuuuauuu! ― disse Zipo Bibrok 5 x IO8, e somente estando lá para entender por que ele disse isso. Nada foi gravado na fita de Ilusões Informacionais e tudo se baseia em boatos.

― Não ― respondeu depois que a coisa que o havia feito dizer "Aaaiiuuuauuu!" tinha parado de acontecer. Ele virou o corpo ligeiramente para pegar os primeiros raios do terceiro e maior dos sóis primevos de Vod, que subia agora pelo horizonte de inefável beleza enquanto o céu brilhava com uma das maiores forças bronzeadoras jamais encontradas.

Uma brisa de aroma suave levantou-se do mar, passeou pela praia e retornou ao mar, pensando aonde iria depois. Em um impulso súbito, retornou à praia, depois voltou para o mar.

― Espero que não sejam boas notícias ― murmurou Zipo Bibrok 5 x IO8 ―, porque acho que não suportaria.

Sua sentença no caso de Krikkit foi executada hoje – disse a garota suntuosamente. Não havia necessidade de dizer uma coisa tão simples suntuosamente, mas ela foi em frente e disse asim mesmo porque combinava com o jeitão do dia. – Ouvi no rádio ― disse ela ―

quando voltei à nave para pegar a loção.

― Ahn ― murmurou Zipo, descansando sua cabeça na areia de pedras preciosas.

― Aconteceu algo.

― Mmrnm?

― Logo depois do envoltório de Tempolento ser trancado ― disse ela, interrompendo sua massagem ―, uma nave de guerra Krikkit, que achavam que estava

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desaparecida e possivelmente destruída, estava apenas desaparecida mesmo. Ela reapareceu e tentou se apoderar da Chave.

Zipo sentou-se com um gesto brusco.

― Como assim?

― Está tudo bem ― continuou ela, num tom de voz que acalmaria até mesmo o Big Bang. ― Parece que houve uma rápida batalha. A Chave e a nave foram desintegradas e desapareceram no contínuo espaço-temporal. Aparentemente, ambos se perderam para sempre. Ela sorriu e deixou cair um pouco mais de Essência de Qualactina nos dedos. Ele relaxou e deitou-se de costas.

― Faça de novo o que você fez agora há pouco.

― Isso? ― perguntou ela.

― Não, não ― respondeu ele. ― Isso.

Ela tentou novamente.

― Isso? ― perguntou.

― Aaaiiuuuauuu!

Novamente, só mesmo estando lá.

A brisa de aroma suave levantou-se do mar outra vez.

Um mágico vagava pela praia, mas ninguém precisava dele.


Capítulo 16

Nada está perdido para sempre ― disse Slartibartfast, seu rosto tremeluzindo com a luz da vela que o garçom robô estava tentando levar ― a não ser a Catedral de Chalesm.

― A o quê? ― perguntou Arthur.

― A Catedral de Chalesm ― repetiu Slartibartfast. ― Foi durante o tempo em que eu estava fazendo pesquisas para a Campanha pelo Tempo Real que eu...

― A o quê? ― perguntou Arthur novamente.

O velho parou e reuniu seus pensamentos, para aquele que ele esperava ser o último ataque à sua história. O garçom robô moveu-se pelas matrizes espaçotemporais conseguindo combinar, de forma espetacular, uma rispidez malhumorada com uma gentil graça, voou sobre a vela e conseguiu pegá-la. Eles já tinham recebido a conta, tinham discutido convincentemente sobre quem havia comido o canelone e quantas garrafas de vinho eles tinham tomado e, como Arthur havia percebido vagamente, através disso tudo haviam manobrado com sucesso a nave para fora do espaço subjetivo em uma órbita estacionária em torno de um planeta estranho. O garçom estava agora ansioso para completar sua parte nesta confusão e limpar o bistrô.

― Tudo irá se esclarecer ― disse Slartibartfast.

― Quando?

― Breve. Os fluxos temporais estão muito poluídos atualmente. Há um monte de lixo flutuando por eles, refugos e destroços, e cada vez mais essas coisas estão sendo regurgitadas do mundo físico. São zéfiros no contínuo espaçotemporal, sabe?

― É ouvi falar ― disse Arthur.

― Ei, para onde estamos indo? ― disse Ford, afastando sua cadeira com impaciência. ― Queria muito que chegássemos lá.

― Estamos indo ― disse Slartibartfast em uma voz lenta e comedida ― tentar evitar que os robôs de guerra de Krikkit possam reunir toda a Chave de que precisam para

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libertar o planeta de Krikkit do envoltório de Tempolento e, assim, libertar o resto de seu exército e seus Mestres ensandecidos.

― É só ― disse Ford ― que você falou sobre uma festa.

― Falei ― respondeu Slartibartfast, abaixando a cabeça.

Ele percebeu que aquilo havia sido um erro, porque a ideia parecia exercer uma estranha fascinação doentia na mente de Ford Prefect. Quanto mais Slartibartfast revelava a sombria e trágica história de Krikkit e de seus habitantes, maior era o desejo de Ford de beber muito e dançar com garotas.

O velho sentiu que não deveria ter mencionado a festa até o último momento. Mas era tarde, ele já falara e Ford Prefect havia se agarrado à ideia da mesma forma que uma Megalesma Arcturiana se agarra à sua vítima antes de arrancar sua cabeça e sumir com sua nave.

― Quando ― disse Ford, ansioso ― vamos chegar lá?

― Quando eu tiver acabado de lhes contar por que temos que ir lá.

― Eu sei por que estou indo ― disse Ford, e inclinou-se para trás e apoiando a nuca nas mãos. Deu um daqueles seus sorrisos que faziam as pessoas estremecerem. Slartibartfast havia esperado, em vão, que sua aposentadoria fosse ser tranquila. Planejara aprender a tocar o heebiefone octaventral, uma tarefa agradavelmente fútil, pois sabia que tinha o número inadequado de bocas.

Também planejara escrever uma monografia excêntrica completamente incorreta sobre fiordes equatoriais, só para deixar bem obscuras algumas coisas que ele considerava realmente importantes.

Em vez disso, de alguma forma convenceram-no a trabalhar em tempo parcial para a Campanha pelo Tempo Real e ele começou a levar as coisas a sério pela primeira vez em sua vida. Por conta disso lá estava ele, passando seus últimos anos de vida combatendo o mal e tentando salvar a Galáxia.

Achava aquele trabalho exaustivo. Suspirou profundamente.

― Ouçam ― disse ele ― na Camtem...

― O quê? ― disse Arthur.

― A Campanha pelo Tempo Real, que eu explico para vocês mais tarde. Notei que cinco destroços que haviam recentemente sido jogados de volta à

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